A defesa dos Direitos Humanos das comunidades tradicionais retratadas na obra literária do romancista da Amazônia, Dalcídio Jurandir (Ponta de Pedras, 10/01/1909 - Rio de Janeiro, 16/06/1979) e das atuais populações indígenas, afrodescendentes e ribeirinhas cabocas.
terça-feira, 21 de fevereiro de 2017
A História serve pra quê?
"E é admirável a propriedade desta diferença, porque em toda aquela terra, em que os rios são infinitos, e os maiores, e mais caudalosos do mundo, quase todos os campos estão alagados e cobertos de água doce, não se vendo em muitas jornadas, mais que bosques, palmares e arvoredos altíssimos, todos com as raízes e troncos metidos na água; sendo raríssimos os lugares por espaço de cento, duzentas e mais léguas, em que se possa tomar porto, navegando-se sempre por entre árvores espessíssimas de uma e outra parte, por ruas, travessas e praças de água, que a natureza deixou descobertas e desempedidas do arvoredo. E posto que estes alagadiços sejam ordinários em toda aquela costa, vê-se este destroço e roubo, que os rios fizeram à terra, muito mais particularmente naquele vastíssimo Arquipélago do rio chamado Orelhana e agora das Amazonas..."
(História do Futuro, Padre Antonio Vieira, Lisboa 1718, Belém: SECULT, 1998, p. 301)
Primeiramente, o "vastíssimo Arquipélago" de que, há 350 anos, o payaçu dos índios falou nas páginas barrocas da profética História do Futuro, é de fato o maior arquipélago fluviomarinho do planeta (chamado na historiografia colonial ilha dos Nheengaíbas, ilha dos Aruans, Ilha Grande de Joanes, ilha do Marajó, em tempo pré-colombiano dito Analau Yohynkaku em língua aruã) do fim da história neocolonial da Amazônia.
O arquipélago do Marajó situado no delta-estuário do rio Amazonas é um mundo com potencial de Países Baixos dos trópicos: foi aí que nasceu a ecocivilização amazônica. E vocês sabem que, comparada a outras mais velhas, uma jovem civilização do Trópico Úmido de pouco mais de mil anos é uma criança que ainda tem muito para crescer. Para que isto aconteça, urge a gente marajoara se descolonizar.
A Amazônia Marajoara, formada de uma parte insular e parte continental bem definidas, tem mais ou menos duas mil ilhas, grandes e pequenas, mais a rica microrregião continental de Portel, totalizando 104 mil quilômetros quadrados de superfície. Este antigo espaço territorial abriga hoje mais de 500 "aldeias" (comunidades locais), 16 municípios com suas respectivas cidades; onde algo como 600 mil marajoaras se acham no mundo e revelam potencial geopolítico de futuro estado amazônico brasileiro. Ou até de país independente, se assim as condições históricas e políticas regionais ensejarem no porvir; à semelhança de São Tomé e Príncipe, Timor Leste ou Cabo Verde este país constituído por dez ilhas somando cerca de 4.000 mil quilômetros quadrados e tendo menos de 500 mil habitantes, membro da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP).
A história da ilha da Madeira e região autônoma dos Açores, em Portugal, Angola, Guiné-Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe tem contributo fundamental na colonização do Maranhão e Grão-Pará: além de escravos e colonos com seus hábitos, costumes e sangue que se mesclaram à população mestiça paraense em geral e marajoara em particular, foi o gado vacum e o cavalo cabo-verdiano que inauguraram as fazenda da ilha do Marajó.
Seria bom para a "humanidade filha da animalidade" (Edgar Morin) que a História sirva para construir a paz. "A Geografia serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra" (Yves Lacoste). A geografia da grande nação indígena Tupinambá, por exemplo, fez a guerra antropofágica em demanda da mítica Yby marãey (Terra sem mal) desde Piratininga (São Paulo) até as nascentes do Paraná-Uaçu (Amazonas), passando pela Paraíba e a Tapuya tetama (terra Tapuia, Pará).
A religião dos Tupinambás era a vingança (segundo Florestan Fernandes). Para este povo original brasileiro, disse o antropólogo francês Pierre Clastres, "se a guerra não existisse era preciso inventar"... Nossa herança bárbara entre outras bárbaras heranças nossas e do resto do mundo. Quem nunca tiver inventado uma estória para dar começo a uma guerra sem pé nem cabeça, que atire a primeira flecha.
Dito isto, uma nuvem de flechas taparia a luz do sol sobre a Terra de infinitos males. E o fim da História iria além da invenção da Bomba Atômica. A ironia da história Tupinambá - nosso famoso Bom Selvagem conquistador do rio das Amazonas e que levou ao velho mundo a sugestão da Revolução Francesa de 1789, segundo os filósofos Montaigne e Rousseau - é que os profetas caraíbas queriam, acima de tudo, o direito à Preguiça com sombra e água fresca para poder dormir e sonhar.
Sonhar com a utopia selvagem daquele lugar que habita a alma do brasileiro: Onde não há fome, trabalho escravo, doenças, velhice e morte... Pensando bem, pode-se dizer que os profetas da Terra sem mal sonharam com a Agenda 2030 da ONU avant la lettre... Mas, a contradição, como tudo na vida, está em que para conquistar o paraíso carecia fazer a guerra. Aí a conquista virava um inferno...
Dom Sebastião foi a guerra no Marrocos e morreu, ressuscitou na pele de Dom João IV, pelas trovas poderosas do poeta sapateiro Bandarra. Com a morte de Dom João IV, o prodígio do poeta de Trancoso foi invocado, em vão, pelo Padre Antônio Vieira que tentou ressuscitar o rei de Portugal mediante a utopia evangelizadora e ecumênica do Quinto Império do mundo.
Porém, sem teologias complicadas, proclamas e trombetas a morte de Dom Sebastião deu nascimento em paz no mar de Pirabas ao singelo mito do Rei Sabá no berço natural da religião afro-amazônica dos pescadores do Salgado. Anchieta com a graça do divino Espírito Santo já havia convertido, nas bandas do Sul, a bárbara antropofagia em sagrada eucaristia do Coração de Jesus.
Se isto não é milagre canônico, é quase. Considerando as circunstâncias de tempo e lugar. Pois deste modo arriscadíssimo e improvável sob todos pontos de vista Deus naturalizou-se brasileiro... "Fizemos Cristo nascer na Bahia ou em Belém do Pará" (Oswald de Andrade, Manifesto Antropofágico).
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