sexta-feira, 1 de março de 2019

Jornada ao ancestral lago Arari: coração da Cultura Marajoara de mil e tantos anos de idade (2).

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... dissemos na primeira parte desta viagem: "Fomos e voltamos com a "Favorita" até o lago Arari a cabo de remo. Meu camarada Vadico tinha um ou dois anos de idade a mais que eu, era o mais entendido e já conhecia o caminho do rio até Cachoeira. Eu ainda não havia passado da ilha de Sant'Ana nem uma remada rio acima. Meu negócio, na verdade, era conhecer o lago falado por meus velhos. Na volta pela parte que me toca, uma malária a mais no currículo. Como diz o outro, tudo vale a pena se a alma não é panema...". Na foto em riba, imagem de barco-motor rebocando montaria: que nem a gente imaginou subir o rio a reboque da lancha-vapor Aida com a dita "Favorita" do compadre Manduquinha do Bacurituba seguindo na espia. Quer dizer, o cabo de proa da montaria amarrado à popa da lancha... Com diferença que ao contrária dessa na fotografia, a canoa de meu compadre era nova em folha, toda pintada de azul e encarnado conforme os trinques. Enquanto essa uma que o barco-motor vai rebocando está tuíra, que Deus defenda; devido o desconforme serviço e o dono dela, paresque, não ter tempo de descanso, dinheiro ou esmero de dono. Talvez até carecia os três elementos duma boa conservação pra dar uma demão de tinta na canoa. É a regra geral na lida nessa nossa vida ribeirinha, cuja economia duma embarcação se reparte em três partes: o apurado da viagem dividido uma parte pro dono, uma pra canoa e, por último, a parte do pescador ou trabucador (vulgo, marreteiro).

Subindo o rio com bom remo de pitaica.

Na História do Futuro, o Padre grande dos índios, Antônio Vieira; escreveu que esta gente andava mais com braços pegados aos cabos de remo que com as próprias pernas. Esta história canoeira se dedica à Criaturada descendente do tempo da vela de jupati e das canoas de um casco só, com certeza depois de atravessar os séculos a canoagem e navegação à vela no grande mar que se chama Pará ainda há de ter lugar ao sol na história do futuro. Por isto, a gente da academia do peixe frito tem especial consideração à turma de canoístas tida e havida em alta conta como confrades natos.

Neste pensamento extravagante nos acode a memória da primeira travessia oceânica a remo da África a América, paresque cem anos antes de Colombo, pela grande flotilha do rei mandinga Abu Bakari II que, segundo a tradição da cidade do Cairo (Egito) espalhada ao resto do mundo, o imperador do Mali aproveitando a correnteza marítima equatorial passou pela boca do Amazonas rumo às Guianas e Antilhas indo parar, diz-que, no Haiti. Na descoberta do mundo "viajar é preciso, viver não é preciso" (Fernando Pessoa).

Isto de rei mandinga chegar, diz-que, nestas paragens muito antigamente eu só vim saber depois de viajar pra fora muito tempo depois da jornada ao Lago Arari. Masporém, compadre Manduquinha metido a pajé, me dizia que a tal de Pororoca da Caviana é uma força mágica do Mar com três pretinhos que se levantam em riba da crista das três primeiras ondas que entram rio adentro: que nem a estória dos remadores de caiaque do rei Abukari que por primeiro vieram na frente desbravar caminho da grande travessia real... Juntos e misturados por diferentes modos de parentesco e afeto fazemos história à beira do prato e da cuia de açaí. Ou remando pelas margens: isto é, o genuíno clube do remo... Quem dera a sociedade em geral aprendesse com a gente ribeirinha a arte de bem viver e se aviar em terra para seguir remando pela beira contra maré e trovoada até estar pronto a atravessar o mar bravio e o infinito desconhecido além do horizonte e da terceira margem do rio...

Masporém, eu não estou aqui pra filosofar e sim pra contar como foi que eu e meu 'camarado" Vadico - no verão de 1956 -, gastamos três dias e três noites mais ou menos, numa viagem redonda a cabo de remo pra ir e voltar do Bacurituda, no Curral Panema, até à vila do Jenipapo, no lago Arari. Como, paresque, esta 
estúrdia aventura fosse a coisa mais importante do mundo achado ou por achar. 

Dois caboquinhos panemas do Curral Panema a remar pelo vasto rio das araras, o Arari famoso; contentes da vida pelos caminhos de dentro da grande ilha do Marajó, onde outrora yonas, maruanazes, aruãs, anajás, guaianazes, mapuás e outros nheengaíbas fizeram história. A gente era muito ignorante, masporém não era burro: o contato direto com a natureza numa viagem qualquer, mesmo de casa para a feira, já é coisa bastante pra dar o parto das ideias adormecidas em cada um pelo curso das gerações.
  
Se o Lago está morto, viva o Lago!

O Marajó é mundo à parte no planeta Amazônia. Dentro deste, no Arari e Anajás, mora o tempo com uma idade de mais de mil anos e lá vai poeira! Desde a supimpa invenção da primeira aldeia em riba do primeiro teso levantado do barro dos começos do mundo. Aterro este cavado com croatá (espata de palmeira inajá) e as próprias mãos do índio ancestral saído do bucho da cobragrande Boiúna no parto da primeira noite do mundo.

Expedita invenção durante a gapuiação coletiva pra pegar o peixe nosso de cada dia e matar a fome do vir a ser... É claro que eu não sabia nadinha destas coisas e nem desconfiava até a idade de meus vinte e poucos anos. Na mocidade era eu um perfeito caboco, mais tapado que caroço de tucumã da lenda da primeira noite do mundo, por onde a luz do dia não passa nem um tiquinho por um buraquinho.

Noves fora dia santo de guarda, a gente crescia naqueles sítios como Deus criou a mandioca e o açaizeiro: não sabia o que era domingo, feriado ou horário certo de trabalho. A gente dependia da maré pra tudo e o relógio despertador era o galo no poleiro da madrugada e saracura cantando na varja quando a maré quebrava, inclusive na tapagem e despesca de igarapé; lanciação pra pegar camarão com rede de cambito, o de comer só chegava em casa quando a maré dava...

Na voz dos mais velhos o lago Arari era pra nós que nem a Meca para seguidores do Profeta, lugar sagrado onde a gente carecia ir
 pelo menos uma vez na vida, ver de perto pra contar de certo como se mistura lenda e realidade. Hoje em dia, infelizmente, o antigo e venerado Lago se acabou... Se acabou primeiramente lado encantado do Lago, de modo que está morto o antigo Lago, então viva o Lago! Por isto a refazenda do tempo e a extravagante viagem da memória, vã tentativa de salvar as últimas recordações de uma vida passageira da história das coisas.

Durante ladainhas era costume ouvir contadores de estória enquanto se esperava chegar todos convidados da reza com tiração de esmola pra festa do santo ou pagamento de promessa: ali era ocasião pra rememorar tantos causos. E assim os moços aprendiam com os velhos. A vida das fazendas e a pesca imemorial agitavam a imaginação dos pequenos ouvindo os causos à distância nas vilas e sítios afastados. Durante a lida a história viajava de boca e boca; falavam de lugares remotos onde chegava carne de capivara salgada de de boi orelhudo roubado, pirarucu, jacaré, marreca, variada abundância de peixe acará, aracu, mandubé, tamuatá, traíra, jeju, cachorrinho do padre, tucunaré... E a violência e injustiça dos donos de fazenda no combate ao roubo de gado, que não acabava nunca.

Minha mãe desde menina cresceu como afilhada de uma rica família dona de fazendas no lago e rio Arari, o padrinho dela, paresque, era o rei do gado... O que ela contava eu pintava em minha mente num mural com as tintas de imaginação. Espantava-me do repetitivo relato de mamãe a enorme quantidade e variedade de aves: tuiuiús, guarás, garças, marrecas, jacurutus, arapapás... Quando eu cresci e me desemburrei mais, maior foi meu espanto ao ler notícias tais como do sábio Alexandre Rodrigues Ferreira e do naturalista Emilio Goeldi que excediam, em meu pensar, tudo quanto eu tinha escutado ou pensado a respeito do famosíssimo Lago com suas árvores de folhagens transformadas em pássaros! Olha lá, o arvoredo coberto penas e plumas do ninhal na beira do lago...

Meu pai morava na vila de Ponta de Pedras, mas o pai dele, meu avô Alfredo, morou durante anos na vila de Cachoeira, ele contava das tantas viagens que a família fez viajando duma vila a outra em canoas a remo com longos preparativos, contratação de remadores, aviamentos, providência para armar tolda de panacarica onde as mulheres e crianças iam abrigadas da inclemência do sol e da chuva. Pernoites no meio da viagem, conforme o tempo da maré ditava; os nomes dessas paragens ainda hoje se pode identificar: Serrame, Fé em Deus, Itacuã, Araquiçaua...  Cada pernoite desses era motivo para serões e conversas para atualizar as novidades de parte a parte. Senhores, senhoras, a criançada e remadores que contavam a seus compadres casos das vilas donde vinham.

O tempo das canoas a remo e da vela era lento naquelas paragens afastadas. Pouca novidade de uma ou outra lancha-vapor vindo de Belém, como no caso da "Aida", a qual mais adiante entra na história de uma maneira interessante. Naquele tempo, o abastecimento de gados do rio (peixe-boi, tartarugas e pirarucu) nas cidades de Belém, Abaeté, Cachoeira do Arari e Ponta de Pedras dependia, em grande parte, do famoso lago Arari. 

A pesca lacustre era tão importante que o próprio governador Magalhães Barata, em pessoa, ia todos anos à vila do Jenipapo abrir a temporada oficial da pesca, mais ou menos no mês de junho, conforme a ditadura das chuvas. Nós estamos falando duma estúrdia viagem de dois "goiabas" (nativos de Ponta de Pedras que faziam marretagem no Arari, a modo do antigo escambo, ou seja troca de mercadorias em espécie), novatos. Isto cinco anos antes da criação do município de Santa Cruz do Arari em 1960. Quanto a canoa "Favorita", enfim, chegou ao porto da vila do Jenipapo esta ainda pertencia ao distrito do Alto Arari do município de Ponta de Pedras e o Arari era, então, o mais importante centro de pesca artesanal do Pará. Hoje em dia as coisas estão muito mudadas ali, inclusive na ausência do museu que o padre Gallo inventou 17 anos depois desta nossa viagem.

Notícia histórica da vila Jenipapo

À margem duma reunião do Instituto Histórico e Geografico do Pará (IHGP), o então presidente Dr. Guaraciaba Gama, em conversa informal nos contou a origem da vila do Jenipapo, município de Santa Cruz do Arari. Mais tarde, numa memorável degustação de canhapira em sua residência, no bairro de Nazaré, em Belém, acrescentou como foi que as primeiras canoas geleiras com peixe para o mercado do Ver O Peso inicialmente recebiam peixe do rio até o curso médio, donde regressavam carregados a Belém. 

Até aí os pescadores saiam de sua moradias com toda família, cachorros e mais xerimbabos pra montar feitoria de pesca, desde começos do verão até início das chuvas, em geral de junho a dezembro. Tais feitorias eram motivo de encrenca com fazendeiros, enquanto as comunidades da pesca alegavam estar em terras de marinha, proprietários de terra afirmavam que ali o que valia era sesmaria da época dos barões de Joanes e que não contemplavam tal situação. 

Na verdade, o que azedava a relação já naquele tempo era o alastrado roubo de gado nas fazendas. Não raro a corda arrebentava no lado mais fraco, com violência física e prisão na famigerada Cadeia de São José e até alguns casos de morte. As histórias destas travancas e malquerenças varavam noites de espera da maré e viajavam na memoria de canoeiros e tripulantes de igarités, barcos de gado e geleiras... Andavam de boca em boca até aos confins dos sítios mais distantes, inclusive na doca do Ver O Peso e subúrbios de Belém à espera do apurado na travessia pra voltar à ilha.

O doutor Guaraciaba Gama, respeitável médico obstetra e grande contador de causos, era filho ilustre de Cachoeira do Arari, contemporâneo do autor de "Chove nos campos de Cachoeira", onde ele se identificava num dos personagens do romance retratado como um certo "Tales de Mileto"... Disse ele que a pesca no lago Arari tradicionalmente atendia ao comércio interno da ilha e que, pouco a pouco, igarités abaeteuaras (comércio de regatão proveniente de Abaetetuba) começaram a trocar mercadorias por peixe seco e salgado, às vezes carne de capivara, uma ou duas reses atoladas que levavam salgada e misturada à carne de capivara ou junto com mantas de pirarucu; dois ou três jacarés peados, pencas de muçuã... O velho escambo do tempo dos índios, sem dúvida, sobreviveu até metade do século XX. Quando fábricas de gelo fizeram aparecimento na Capital transformando igarités veleiras em geleiras motorizadas como hoje se vê.

Tomando pé na estória.

Que nem o meandroso rio faz muitas voltas até chegar às cabeceiras, tudo isto é importante para o leitor entender a jornada da montaria "Favorita" ao lago Arari. Dizendo eu ainda o que ouvi, mais ou menos, o doutor Guaraciaba contar: que na medida que os cardumes dos rios escasseavam, as geleiras remontaram, pouco a pouco, até chegar finalmente ao lago. 

Foi então, quando um paraibano de nome João Barros, conhecido como Juquinha; montou casa de aviamento na Boca do Lago para fazer freguesia com pescadores do lugar e contratar venda do peixe às geleiras, assim chamadas por resfriar e conservar o peixe em gelo até o mercado de Belém. Isto foi sim uma revolução. Pois até então tudo era moqueado ou salgado em poucas horas após a pesca e  secar ao sol, sob pena de estragar e botar a perder todo o trabalho e capital de muitos em apenas um dia. Podia-se imaginar.

Com a fome da cidade grande do Pará e a carne não dando vencimento, o peixe do mato vindo do Marajó, mais o vinho de açaí era socorro da pobreza. Então, a casa de comércio do sr. Juquinha, na Boca do Lago, prosperou do dia pra noite. E como existisse às proximidades dela um pé solteiro de jenipapo, o lugar passou a ser chamado Jenipapo, dando nome à vila até hoje. Notável pela salinidade do solo à beira do Lago, raro era o arbusto que crescia naquelas paragens. Razão pela qual, no Jenipapo havia escambo de frutas e víveres vindos do baixo rio por peixe seco e salgado. A vila de Santa Cruz concentrava famílias de criadores de gado, boa parte oriunda de antigos imigrantes da Espanha; enquanto os pescadores nativos moravam no Jenipapo.

As duas comunidades mantiveram relacionamento hostil entre si, durante muito tempo; cuja origem se perdeu nos idos da capitania hereditária da Ilha Grande de Joanes, certamente. Sendo criadores de gado aliados naturais aos fazendeiros. Estes são os chamados grandes proprietários, raramente presentes nas suas fazendas, mas morando em Belém com suas famílias enquanto administravam a propriedade através de feitores, os quais por sua vez cuidavam dos vaqueiros e do gado. Antigamente, cada fazenda era autossuficiente como um feudo. Criadores eram minifundiários que moravam principalmente em Santa Cruz e ainda criam animais à solta no pasto, em geral sem cercas praticando a pecuária familiar.

Comerciantes e políticos, todavia, pendiam por interesse econômico ao lado dos pescadores artesanais. Embora o poder econômico dos grandes fazendeiros predominasse junto ao poder em Belém, localmente o número de pescadores apesar da exploração do trabalho e da pobreza, não passava desapercebido aos olhos dos políticos. O populismo baratista, então, montou arraial nos municípios do interior e com o Jenipapo não foi diferente.

O próprio Juquinha Barros teria tido a ideia de convidar o governador Magalhães Barata para abrir oficialmente a temporada de pesca no lago Arari a cada ano, dando ali uma festança. Conta-se anedota segundo a qual numa ida de Barata ao Jenipapo,
alguns pescadores o procuraram para se queixar da exploração que supostamente o Juquinha fazia contra eles vendendo material de pesca e mercadorias de consumo caro e pagando barato pelo peixe comprado.

Na hora do discurso, Barata se saiu com uma de Salomão. Agradeceu a hospitalidade do amigo João Barros, homem honrado e trabalhador que promovia a pesca no Jenipapo. Porém, naquele dia, fora informado de que um sujeito chamado Juquinha andava a explorar aquela pobre gente. Pedia, então, ao caro amigo Barros que verificasse o caso e, caso as queixas continuassem, no próximo ano ele, governador, voltaria para levar preso o tal Juquinha para o temível Presídio São José... Claro que, de uma maneira ou outra, as queixas sumiram por encanto.

O lago Arari além de ter sido apogeu da célebre Cultura Marajoara, desde a doação das fazendas dos jesuítas, na segunda metade do século XVIII, passou a despertar grande interesse econômico. Diversos cientistas o visitaram e historiadores escreveram sobre o Marajó em geral e o lago Arari em particular. Eis um trecho de autoria do naturalista Alexandre Ferreira a respeito dos chamados "Contemplados" (pessoas que receberam por doação do governo fazendas expropriadas da Companhia de Jesus), onde a fazenda Santo Inácio da boca do lago veio a ser hoje o município de Santa Cruz do Arari:

"Sete foram as fazendas de gado que na ilha tiveram os jesuítas: quatro no Arari e três no Marajó-guaçu. Das sete fazendas, considerarei as que tinham no Arari, em primeiro lugar, a saber: a primeira, rio acima, é a fazenda de Nossa Senhora dos Remédios, em que foi contemplado o mestre-de-campo José Miguel Aires, hoje de seu filho Antônio Miguel Aires. A segunda, no igarapé São José, em que foi contemplado o defunto José Correia de Lacerda;
a terceira, a do Menino Jesus, a do rio Mari, à esquerda, em que foi contemplado o sargento-mor da praça, João Batista de Oliveira, hoje de seu genro o alferes Antônio José Lima; quarta, a fazenda da boca do lago Santo Inácio (grifei), em que foi contemplado o sargento-mor da cidade, Manoel José Henriques de Lima, hoje de seu genro, sargento-mor de auxiliares, Carlos Gemaque. Além destas quatro, farei menção dos dous retiros, como chamavam, isto é, duas fazendas de beneficiar gado: um nas cabeceiras do lago Nanatuba, em que foi contemplado o coronel Miguel Joaquim Pereira de Souza Feio, e outra nas cabeceiras do rio Anajás, que deságua no Arari, na contemplação do sargento-mor José Pedro da Costa Souto Maior. Quanto às três de Marajó-guaçu, na São Brás, contemplou-se João Falcato da Silva; na de São Francisco, o sargento-mor Domingos Pereira de Morais, na do Rosário, o alferes Francisco da Costa Almeida da Silva, hoje de sua mulher, Dona Ana Felícia de Queirós, que já acima disse que casou segunda vez. (Alexandre Rodrigues Ferreira, "Notícia Histórica da Ilha Grande de Joanes, ou Marajó", separata da "Viagem Filosófica", 1783).


Eis que as circunstâncias da viagem foram expostas nestas mal traçadas linhas. Agora é hora de carregar a "Favorita" com feixes de casca de muruci, que Vadico e eu mesmo fomos tirar no campo, com machado e cuidado de não matar as árvores. Já se vê que ainda não se usava linha de náilon, velas de canoa, redes e linha de pesca, dita linha "americana"; careciam meter na tinta extraída de casca de muruci para se conservar. Eu estava então com 18 anos de idade e tudo isto era para mim um aprendizado. Vadico um ano mais velho e seu pai e os tios lhe ensinaram como fazer viagem para o Arari. Ele, paresque, tinha um portulano na cabeça e falava com piloto veterano duma nau capitanea.

O problema é que nenhum dos dois "goiabas" novatos havia jamais ido de fato ao Lago. O tal piloto se vangloriava de ter ido uma vez à festa do glorioso São Sebastião da Cachoeira: masporém, a Cachoeira fica rio abaixo a menos da metade da viagem até o dito lago grande... No igarapé Bacurituba na maré cheia mata adentro a gente ainda esperava a maré virar, completamos a carga com cachos de banana inajá e paneiros de manga. Saracura deu o sinal na varja. "Até mais mea gente"... A comadre e o compadre na beira do igarapé disseram as palavras de praxe, "Vão com Deus e voltem em paz"...  "Se Deus quiser", Vadico completou: a gente levava tudo isto muito a sério, acreditando que as palavras tem força. Minha avó dizia que, antigamente, quando um parente premeditava viajar pra Cidade, carecia rezar novena e ir de casa em casa se despedir dos parentes na vila. Quando regressava, são e salvo, deixava uma vela de cera amarrada num pedaço de miriti que ia cair, direitinho, no remanso e bater aos pés de Nossa Senhora do Tempo em sua ermida santa na beira do rio Barcarena onde o zelador ou zeladora recolhia para as rezas do costume...

Demos aos remos com força estrondando dentro da varja, a maré começava a vazar e a Favorita entrou na correnteza pronta a fazer sua estreia. Na boca do igarapé Bacurituba pés de aninga se agitavam na correnteza como a dar adeus, pelo espingarito dos mangues ciganas voavam espiando pra ver aonde iam aqueles cabocos doidos àquela hora da tarde... Por que não haverá de dormir a sesta em vez de se meter em travanca naquela extravagante jornada?... No rio Canal, que pelo lado de dentro separa a ilha grande da ilha de Ponta de Pedras; a vazante pegava sustância, Vadico ia no piloto e eu na proa forcejando pra canoa adiantar a viagem. 


Logo a gente deixava pra trás o sítio Meia Noite com seus barrancos amarelados pela margem direita e na esquerda o velho Serrame com sua história naufragada no fundo do rio escavado pela cobra grande na erosão... Um olhar e um pensamento de até logo... Ninguém na beira àquela hora para ver os argonautas desfilar. Umas vaquinhas no pasto, o laranjal amofinava com a ausência do meu finado avô Chico...

Próxima parada, o síto Tainhas pra comerciar com "seu" Prego Tavares vinte sacas de sal, três grades de cachaça, café em grão e moído, açúcar, meio alqueire de farinha d'água e quatro rolos de tabaco. Noves fora a farinha, café moído e açúcar do gasto, tudo mais era capital a ser aplicado à compra de peixe-seco. Com este na volta, enfim, a viagem redonda teria o seu lucro apurado. Como de fato, pouco, masporém ainda rende até hoje nestas maltraçadas linhas.

Olha, pra começar, até que a gente não se saiu mal: das sete da manhã no Bacurituba chegamos no Baixo Arari pouco acima do furo das Laranjeiras com o finzinho da maré e do dia. Havia um silêncio estranho... Vinha do fundo do rio e o calor do dia se despedia do corpo dos remadores suarentos e cansados. Mais acima ficava o Araquiaçau, eu ainda não sabia o aquele sítio representou na história desta gente... "Espera sumano - disse Vadico - tem coisa errada aqui...". Segundo cálculos do piloto, baseado em informações de seu experiente tio Cidoca, aquele ponto era pra estar cheinho de canoas à espera da lancha-vapor Aida que iria nos rebocar a todos até o Alto Arari. Já começava escurecer e nada de lancha nem de companheiros goiabas... Algo estava fora do eixo da estória. Foi aí, então, que se ouviu a inconfundível zoada de remos n'água. Só podia ser uma montaria esquipada que se aproximava, aí a gente poderia saber de fato o que estava acontecendo. Uma voz das sombras saudava os dois panemas... Perguntava o que a gente estava fazendo ali àquelas horas. "A gente vamos subir e tá esperando a lancha..." - disse o sumano Vadico. "Mas, quando já, parente?! - exclamou em meio à penumbra no adiantar da hora a voz passante e os remos novamente estrondaram se afastando - Amanhã é dia de eleição e a lancha foi buscar eleitor em Belém pra votar na Cachoeira... Surpreso, eu gritei, "puta merda!... Só faltava essa.

A gente vivia tão por fora dos acontecimentos, ou melhor tão enfronhado na ilha que até perdia a noção do tempo. Foi aquela a última eleição que Magalhães Barata concorreu e ele foi eleito pra depois morrer no cargo. Era o ano de 1956, eu fui saber muito depois... E olha lá que eu sabia ler e escrever, graças ao populismo do Coronel Barata que obrigou professora normalista ir pro interior antes de lecionar na Capital. Que fazer agora parado na boca do rio Arari à espera do reboque da lancha-vapor que não viria? Voltar pra trás ou seguir adiante se fosse capaz? Que nem o tal de Orellana na descoberta, por acaso, do rio das Amazonas...