quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Nas margens do Marajó-Açu: mariscando pela beira das memórias do Bernardes.

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farol Itaguari - construído na década de 1930 na foz do rio "onde o Marajó começa". Foto de capa da primeira edição da obra Nas margens do Marajó-Açu de autoria do notável pontapedrense Bernardino Ferreira dos Santos Filho (1993).




"Naquela estrada sinuosa de terra batida, ladeada de cajueiros, que corta o campo de mangabeiras, os pássaros esvoaçam entre os igapós e os arroios, e pousam nos ramos ao entardecer chilreando no silêncio dos céus. O campo é tão silencioso que escuta o zumbir do silêncio. Nos igarapés escuta-se o cair das águas nos cascalhos, num murmúrio tão suave, que faz adormecer.

Nas cabanas uma lamparina de luz trêmula e uma vela acesa à porta de um pequeno e tosco oratório; lá, o caboclo pescador reza antes de ir à pescaria, fazendo promessas à Nossa Senhora do Bom Tempo, para enfrentar as bravas ondas da Baía do Marajó. 

Deitado no banco corrido de madeira, com pés em forquilha, velho Bibiano discutia política municipal: ao longe ouvia-se o som do clarinete do caboclo Gordiano tirando notas musicais por ele mesmo inventadas ao gosto dos mangabeuaras. No campo as mangabas estavam maduras, os cajueiros floriam e nas altas castanheiras bem no espingarito, os ninhos dos japiins balançavam na ventania. 

Na barraca feito capelinha, o Espírito Santo em ladainha com tambor e violão. 

Em passos rápidos os Tapuios surgiam do mato com aturás às costas, com correias de cipó passadas cruzando o peito, curvados para a frente, carregados de mandioca para o preparo da farinha d'água e beijú, feitos em forno de barro e tacho de cobre, trabalhado por belas caboclas morenas, vestidas apenas com saia, de busto e seios nús, sem que isso despertasse maldade entre os homens nativos bons e ingênuos. Descendo o barranco por caminhos estreitos, a praia orlada de coqueiros que estão sempre tombados contra o vento, onde à noite a lua parece nascer das profundezas das ondas da baía, brilhando nas folhas das bacabeiras. Andei pela solidão, sentei-me nas areias da praia, as ondas molhavam meus pés... juntei pedrinhas entre os escolhos, percorrendo a vista pela imensidão, em minha frente o mar de espuma brilhante de estrelas; para os lados, blocos castanhos de pedras, atrás, lá para as bandas do poente, a minha vila à sombra das mangueiras, Ponta de Pedras". [Bernardinho Ferreira dos Santos Filho, Nas margens do Marajó-Açu, edição do autor: Belém do Pará, 1993, pp. 9 e 10).    

Começa assim a lírica aquarela da saudade do Bernardes (apelido fraterno de Bernardino Ferreira dos Santos Filho). Singelo e ingênuo livro de lembranças do nosso Saint-John Perse papa goiaba, a memorável obra não pretende tomar ares acadêmicos de forma nenhuma, mas mesmo assim o modesto e espontâneo Nas margens do Marajó-Açu nos lembra de longe o Menino de Engenho do paraibano José Lins do Rego: um melancólico canto de fogo morto e alambique seco sobre a decadência canavieira do Nordeste. 

A nossa velha Ponta de Pedras na ponta da grande ilha do Marajó, sozinha é maior que um país insular da outrora África colonial portuguesa, chamado São Tomé e Príncipe. No passado este país irmão de língua portuguesa na CPLP, foi entreposto de escravos com destino ao Brasil. Os cativos da Guiné, Angola e Moçambique passaram por ali ou por Cabo Verde... Donde vieram os escravos do engenho dos frades de Santana do Arari? E dos mais engenhos como Araquiçaua, Itacoã e Campininha tão entranhados na história de Ponta de Pedras? 

Que sabemos nós do tempo das candeias em fuga para velhos mocambos (quilombos) distantes das maldades dos senhores e senhoras de escravos, tais como Gurupá (margem do rio Arari, em Cachoeira do Arari), Tartarugueiro, Bacabal.... onde fugitivos da senzala buscavam abrigo e proteção?  "Lá para as bandas do São José, as guaribas cantavam uma novena em coro. O silêncio era quebrado pelo gralhar de uma coruja da noite, que morava nas ruínas da Casa Grande coberta de ervas daninhas. 

O velho tio Gentil, contava que numa noite escura, no mais profundo silêncio, já muito tarde, pressentiu que os cães latiam acuando algo, para depois ouvir embaixo do soalho, apenas uns grunidos como se estivessem se escondendo. Um dos cães conseguiu penetrar na varanda da casa, pulando pela janela aberta e foi-se esconder com o rabo entre as pernas, embaixo da rede do velho que, nesse instante, ouviu lá fora na escuridão, no rumo da porta, uma voz cavernosa como se fosse do outro mundo, que dizia quase chorando, implorando: "Me ensine a estrada, me ensine a estrada..."

A voz foi se perdendo na imensidão do campo, e nesse momento, o pavor tomou conta da casa, ninguém mais dormiu, até os galos cantarem e o dia raiar nas campinas." (pag. 47). A voz da escura noite marajoara foi se perdendo no tempo: mormente quando o esclarecido prefeito Fango mandou construir a famosa Uzina de Luz da cidade do Itaguari (Ponta de Pedras). Aquela voz cavernosa que tio Gentil ouviu na fazenda era fantasma escapado de um navio negreiro? Um espirito cabano vagando na grande noite das almas perdidas da Adesão do Pará ao império tupiniquim de Dom Pedro I do Brasil e IV de Portugal? Ou talvez um preto escravo fugindo da tortura do Viramundo, vindo através dos campos de Cachoeira para as bandas de Ponta de Pedras à procura de liberdade em um mocambo qualquer rumo ao Anabiju ou Bacabal, já nos campos do Paricatuba? Lá perto donde uma outra voz, desta vez no romance iberiano de Dalcídio Jurandir chamava pelo filho do senhor de fazenda a fim do herdeiro das sesmarias e rebanhos mil não se perder na mata infestada de fados, feitiços, lendas, duendes: - "Missunga, ó Missunga!

Além de se tratar do maior arquipélago fluviomarinho do mundo, Marajó é reino encantado. Em seu rico folclore, humilhados da classe mais desvalida vingam-se da maldade dos "brancos" (donos locais do poder) fazendo, como o caso de um certo malvado chamado João Maçaranduba, que havia pacto com o Diabo; ser levado vivo para o Inferno. O poeta Dante não faria melhor... Diz-que, um valente vaqueiro, chamado Santuca, tendo pescado no lago grande quantidade de peixes do mato, precisou arrumar um grande cesto para levar os peixes ao mercado antes de estragar e do sol levantar. Noite alta, céu coberto de nuvens escuras, montado em seu cavalo marajoara alazão com o balaio de peixes na garupa, o vaqueiro trotava atravessando os campos gerais mergulhado em silêncio e trevas.

De repente, eis que Santuca viu sair do nada em meio às sombras um grande vulto à sua frente. Era um cavalo pardacento, parecendo vir das baias do inferno, sobre a sela um cavaleiro sombrio que lhe cortava o caminho. Santuca refreia o trote do animal. A estranha figura salta da sela dizendo, com voz de trovão, "se tu és homem vamos lutar pra ver quem de nós dois pode mais"... Santuca pensou, valei-me São Sebastião! Ele não era homem de fugir a nenhum desafio, nem que viesse da parte do Capeta. 

Naquelas horas mortas, sem testemunhas aconteceu nos campos do Marajó a maior peleja metafísica do mundo, noves fora a extraordinária luta de Jacó contra Jeová-Deus dos Exércitos na terra de Canaã...  Dá-lhe em riba, dá-lhe embaixo... rasteira rabo de arraia pra lá, cabeçada pra cá... murro, capoeira, tapa, bofetão, marrada...  O vaqueiro meteu mãos ao balaio passando a arremessar sobre o Inimigo uma saraivada louca de pongós, jejus, traíras e cachorrinhos-do-padre que ele estava levando para o mercado. 

Desta feita, paresque, o vaqueiro Santuca havia topado macho mais atrevido que ele e o coisa ruim achou um homem de fato, que topava qualquer parada e lutava que nem sete demônios. Assim foi a desconforme peleja até que o galo cantou para avisar que o tempo já era pertencente à madrugada. Então, o lutador das sombras falou: "o que te salvou foi o galo cantar!". Santuca retrucou, "e a ti, seu corno, o que te livrou da porrada foi o peixe acabar".

Do fundo da memória do Bernardes os "Tapuios surgiam do mato com aturás às costas, com correias de cipó passadas cruzando o peito, curvados para a frente, carregados de mandioca". Tapuio é o índio manso catequizado, servo da gleba remanescente do Diretório dos Índios (1757-1798) e descendente do índio brabo da "tribo" dos Guaianazes [Guaianá] e diversas outras etnias "nheengaíbas", às quais se referiu, no século XVII, o Padre Antônio Vieira. Segundo o naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira, da Universidade de Coimbra, na Notícia Histórica da Ilha Grande de Joanes ou Marajó (1783), os extintos Guaianás tiveram aldeia elevada em Lugar de Vilar (1758) no igarapé de mesmo nome chamado e que morreu pelo assoreamento (próximo ao depois povoado Pau Grande e hoje agrovila Antônio Vieira). O caboco Gordiano povoa as lembranças do Bernardes com o som do clarinete afinado com a brisa que sopra da baía imensa como o mar das imaginações ao cair da tarde... Prova de que os antigos pontapedrenses em geral tinham pendor para música de sopro, que está na origem da tradicional Banda Musical da cidade.

O Bibiano a que se refere era, certamente, Bibiano Rodrigues que deu nome à rua principal da vila da Mangabeira, pai de Brasilino Rodrigues, Luciano e Raimundo "Abaeté" Rodrigues... Este último foi vereador e, certa vez, me contou o caso em que Bibiano arpoou o derradeiro peixe-boi que apareceu na comedia perto da boca do extinto igarapé do Vilar. Bibiano arpoou, mas não aguentou o bicho que era deveras grande e foi levando arpão, linha, pescador, mutá, canoa e tudo mais... Brasilino Rodrigues dizia que por dificuldade de porto para canoas de pesca, então Bibiano levou para Mangabeira a família junto com os últimos moradores do "Vilarinho" (Lugar de Vilar) juntando antigos mangabeuaras e derradeiros descendentes dos Guaianás, à meia légua de distância acima pela beira da baía. A casa de Bibiano na Mangabeira teria sido a primeira coberta de telhas de barro, enquanto as mais ainda eram cobertas de palha com parede de pau a pique revestida de barro. A dificuldade de porto foi causa principal da mudança do primitivo Lugar de Ponta de Pedras (1758) elevado da antiga aldeia das Mangabeiras (1686) e freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Ponta de Pedras (1737) para a margem esquerda do rio Marajó-Açu. Emancipada com Vila de Ponta de Pedras no dia 30 de abril de 1878.

O Engenho Bem-Bom, em Ponta de Pedras, é lugar de memória salvo da corrosão do tempo e da voracidade do espaço em contínua evolução pelo singelo livro do Bernardes: um dedo indicador histórico que nos remete à aventura da colonização portuguesa na Amazônia pelo braço escravo africano e a roça de cana de açúcar trazida da ilha da Madeira para o Brasil e, primitivamente, da Índia como a primeira mangueira que o velho José Ventura Boulhosa plantou na antiga terra do índio Marajó, dada em sesmaria em 1686 aos Jesuítas e desapropriada, em 1757, pelo Marquês de Pombal para doar ao contemplado Domingos Pereira de Moraes, provavelmente patriarca da família de Antônio Pereira de Moraes, que foi sogro do mestre-pedreiro português Cândido Cerdeira, construtor dos principais prédios da municipalidade; e primeiro presidente da Câmara Municipal da nova Vila de Ponta de Pedras (conforme à ata de instalação nova Vila de Ponta de Pedras, em 30/04/1878). 

Como, remotamente, veio da Índia também o pé de jambo que o doutor Romeu Santos, irmão político do memorialista Bernardes; mandou plantar no jardim da cidade em face ao Palácio Municipal mandado construir pelo cachoeirense Major Djalma da Costa Machado; como o hindu gado zebu e o búfalo vieram parar nas fazendas marajoaras, depois do gado vacum e equino vindo diretamente de Cabo Verde. O engenho do capitão Bernardino Ferreira dos Santos, imigrante de Oliveira dos Frades, na Beira Alta (Portugal) em Ponta de Pedras (Marajó, Pará, Brasil) não existe mais na geografia ribeirinha do Marajó-Açu. Todavia, existe na memória dos leitores do Bernardes; tal qual na beira do rio Arari, em Cachoeira, o chalé-ilha de Alfredo batido de vento e chuva se acabou pelo descuido dos vivos, mas resiste enquanto houver um leitor de Dalcídio Jurandir.

De certo modo, comparo Bernardes ao prêmio Nobel de Literatura de 1960, Saint-John Perse. Nesse ano em Ponta de Pedras com Arrison Alencar, Suetônio Andrade, Carmosino Malato e outros mais da informal "turma da Poronga" (nome de uma pequena mercearia do Arrison, na boca do Carnapijo e esquina do campo do Marajoense; onde a rapaziada desempregada reunia-se para jogar conversa fora e idealizar o futuro) fundamos o Grêmio Cultural Marajó de vida curta e longas pretensões. Pode ser exagero comparar o nosso Bernardes com laureado francês Saint-John. Mas, primeiramente pelo temperamento cordial e diplomático do filho mais novo do capitão Bernardino Ferreira dos Santos, e o diplomata e escritor nascido no seio de uma família de velhos colonos franceses na ilha de Guadalupe, Antilhas francesas. 

Ao contrário da poesia libertária da negritude de Aimé Cesaire, da ilha da Martinica; que acha ressonância em Bruno de Menezes no Pará; Saint-John via a Guadalupe como uma ilha idílica despida de maiores conflitos entre os povos Caribes que lá povoaram primeiramente, colonos e escravos, era ele saudosista do ancien régime. Bernardes que nem o premiado escritor francês descendia de proprietários de terra, era neto dos primeiros Tavares portugueses que emigraram para a ilha do Marajó e introduziram o cultivo da cana de açúcar em Ponta de Pedras, requerendo mão de obra escrava.




brasão da família Tavares em Portugal

As ruínas idílicas dos engenhos emolduram as lembranças do memorialista de Ponta de Pedras. Bernardes revela no começo e fim do livro atração sentimental pela antiga aldeia da Mangabeira, lugar onde a história do município começou. Na paisagem da saudade que ele pinta, finalmente, o progresso parece ressuscitar na auspiciosa gestão de Wolfango Fontes da Silva, Fango; que foi buscar nas famílias nordestinas assoladas pela secas o braço trabalhador - num tempo que não existia verba federal, bolsa família, defeso da pesca, nem aposentadoria rural - que daria novo impulso ao município.



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2 comentários:

  1. Tomei conhecimento do texto "Nas Margens do Marajó-Açu, de Bernardino Ferreira dos Santos Filho, Belém 1993, através do meu orientador, professor Günter. Ele me indicou o livro para minha dissertação, mas não encontro em lugar algum. Gostaria muito de tê-lo, comprar! Se puderem me ajudar, agradeço.

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