quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Afuá: toponímia e negritude na Amazônia Marajoara

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Rio Marajozinho: maré cheia banha a orla da cidade de Afuá (ilha do Marajó - Pará).




A "Grande Enciclopédia da Amazônia", organizada por Carlos Rocque, Amazônia Editora: Belém-Pará, 1967; ao tratar do verbete Afuá informa, laconicamente: "Afuá é topônimo indígena; porém até hoje não lhe foi determinada a origem". Na falta de fonte o folclore inventa alguma explicação e o povo apela a trocadilho de supostas classes A, B, C e D ao encontro do cacófato pornô. Alguma vez, ouviu-se dizer que o nome Afuá podia ser uma onomatopeia causada pelo bufido dos botos ao vir à tona respirar. Pura fantasia, entretanto.

Sobre como a cultura africana chegou ao Marajó, certa vez um compadre deu-me explicação mágica da Pororoca, dizendo ele que as três vagas da "cabeça" d'água são três pretinhos encantados que cavalgam as ondas. Ora donde o compadre tirou essa? Seria por acaso uma velha tradição marajoara? Como surgiu esta coisa? A conversa deu-se, pelos anos 50, na barraca do compadre e a comadre, ele um cafuzo esperto meio pajé e ela uma preta retinta de simpatia à flor da pele, moradores do igarapé Bacurituba, no Rio Canal.

Passados anos, por acaso, li o relato da travessia do Atlântico pelo rei mandinga Abubakari II, supostamente cerca de duzentos anos antes de Cristóvão Colombo chegar às Bahamas (1492). O historiador africano Mali Gaossou Diawara e outros vem nos últimos anos buscando evidências da vericidade desse relato medieval achado originalmente no Museu do Cairo (Egito). 



Griôs do Mali

A saga de Abubakari II chegou ao conhecimento da posteridade, graças a seu sucessor no trono, Mansa Musa famoso pela peregrinação a Meca com uma caravana de mais de seis mil pessoas, mais de cem camelos carregados de ouro. Contam que a estada de Mansa Musa no Egito teria causado inflação pela enorme quantidade de ouro que ele prodigalizou na cidade do Cairo entre a ida e a volta de Meca. Foi quando o imperador mandinga contou a aventura de seu antecessor Abubakari, entretanto tratada como tabu em seu próprio país. 

O monarca do Mali abdicou ao trono em 1311 e partiu para o Oceano desconhecido com uma flotilha de 2.000 barcos a remo e vela, movido por forte obsessão em conhecer a outra margem caso existisse. Ele queria saber se o Atlântico era tão grande quanto o rio Niger. Mas, esta decisão teria causado à corte enorme contrariedade e sentimento de abandono, que seus conselheiros ressentidos pela abdicação do rei proibiram aos griôs (zeladores da história oral) contar sobre a viagem de Abubakari. Do resultado da expedição não se soube mais. Entretanto, segundo Diawara passado tanto tempo os griôs começam a quebrar o silêncio facilitando as pesquisas.

Aonde foi parar Abubakari II e sua flotilha não se sabe, tudo são suposições. E às vezes suposições são pontes que levam ao encontro de descobertas. Diawara supõe que Abubakari desembarcou em Pernambuco e formou uma colônia no Nordeste brasileiro. Outros pretendem que a corrente equatorial e o vento leste empurraram a frota mandinga para o Norte do continente americano, terminando a aventura nas ilhas do Caribe. Verdade ou não, Colombo teria avistado curiosos índios-negros armados de lanças com ponta de cobre. A América Central ainda tem ídolos de pedra de inconfundíveis traços africanos.

Mas, afinal, onde entra a Pororoca nesta história? Consta do relato original de Mansa Musa no Caíro, que Abubakari após estudar os meios de navegação, suprimento de água potável e alimentos usados pelos pescadores em alto mar, decidiu mandar um destacamento precursor de 200 caiaques. A este determinou através de comandantes, navegar rumo à margem oposta até onde o suprimento de água e alimentação desse para retornar ao ponto de partida. No rio Gâmbia, Guiné, supostamente.

Ao cabo de certo tempo, retornaram apenas dois remadores dizendo eles ter atravessado o mar e chegado a um grande rio de água doce. Quando, subitamente, levantaram-se grandes ondas arrastando os caiaques com fragor. Somente os dois últimos que vinham atrás escaparam e com grandes dificuldades conseguiram retornar junto ao imperador. Foi então que este resolveu vir ele mesmo à frente de 2000 barcos equipados. Teriam, por acaso, alguns remadores de Abubakari escapado da fúria da Pororoca e dado inicio à lenda? Ou seria impossível que, acidentalmente, pescadores da costa africana fossem arrastados mar afora para a correnteza equatorial até as costas do Brasil? O poderoso vento leste talvez trouxesse no passado longínquo nautas africanos ao acaso. Quem sabe?  


Já o grande pesquisador Vicente Salles (1931-2013), autor renomado de O Negro no Pará, aborda o topônimo em apreço em Vocabulário crioulo: contribuição do negro ao falar regional amazônico - Belém: IAP, Programa Raízes, 2003; ensinando "AFUÁ, s.m. Rio, ilha, cidade e mun. localizados na parte ocidental da ilha do Marajó # ETIM. Provável afro-negrismo. F. Pena: "Com este nome que não é indígena nem português, existe uma nova povoação, 35 milhas a O. de Chaves na ponta de uma ilha da margem direita e oriental do Afurá, que desemboca no Amazonas... (1973, II, 51). Duas vozes afros no texto de F. Pena, afuá e afurá, sendo este ou rio ou igarapé, que desemboca no Amazonas, na verdade um paraná. Afurá, ver em seguida.

AFURÁ, s. m. Cozinha afro-baiana: bebida feita de fubá de arroz; o angu desmanchado no leite de coco e gengibre. Registrado. em 1938, pela M.F.P. em Belém (O. Alvarenga, 1950, 25). Usada e servida a todos os participantes em certas cerimônias do batuque paraense (Leacock, 1972, 375) # ETIM. do ior. furá, bebida refrigerante feita de milho ou arroz, misturado com mel (J. Raymundo, 1936: 145); ... ".

A pergunta que se impõe: Como e quando o vocábulo teria chegado àquelas paragens da ilha do Marajó? Não há dúvida sobre existência de antigos mocambos e quilombos na vasta área insular das Guianas, incluindo Amapá, Baixo Amazonas e ilhas do Marajó. O historiador Arthur Cezar Ferreira Reis, na bem documentada obra Limites e Demarcações na Amazônia Brasileira, Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1947, ao comentar a expulsão dos holandeses, transcreveu trecho do relato de Luís Aranha ao monarca Felipe IV de Espanha durante a União Ibérica (1580-1640), obra citada 1º Tomo, pág. 40, que se refere à adesão de um murubixaba Tupinambá no rio Tocantis para ir com seus guerreiros aos combates que se seguiram, a partir do rio Xingu, contra feitorias estrangeiras ali desde fins do século XVI tendo comércio com nativos aruaques, inimigos hereditários dos tupis invasores da região das Ilhas: 

"e no descurso dele [fala provavelmente do cacique tupinambá do Baixo Tocantins contatado por frei Cristóvão de São José] fis pazes e domei a obediencia de vmg.te mt.º número de gentio. E o persuadi a que me acompanhasse Com suas canoas e arrmas e Com elle Rendi e tomei duas fortalezas aos olandezes que naquele gran Rio tinhão situadas, hûa chamada mataru [Porto de Moz atual] e outra de nassau [Veiros]. Cativandoos a todos e senhoreandome da artelharia arrmas moniçoens E escravos de angola (grifo meu)... 

Foram esses mercadores holandeses que, aproximadamente, desde 1590, pelo Baixo Amazonas em boa vizinhança com nativos da região desde a Guiana trouxeram os primeiros negros escravizados para a Amazônia. Logo que o tráfico de escravos se expandiu entre reinos da costa ocidental da África e mercadores europeus, a luta de resistência dos povos escravizados se instalou com a formação de quilombos. Tal como os Jagas, guerreiros das selvas do Congo; e os Bijagós da Guiné-Bissau, temidos por caçadores de escravos em África e que, quando capturados, quase sempre se rebelavam e na senzala lideravam fugas de escravos para lugares distantes e escondidos chamados mocambos.

Com a colonização portuguesa, a ilha do Marajó tornou-se um grande quilombo, que apesar do forte de Gurupá (1623) e da capitania hereditária da Ilha Grande de Joanes (1665), só em 1680 permitiu construção do primeiro curral de gado diante do perigo dos índios bravios (Aruãs e Anajás), desertores e escravos refugiados nos centros da ilha. O rio Anajás Grande interligado com o rio Arari, até metade do século XVIII, foi caminho secreto de índios bandoleiros, desertores e quilombolas.

Nas Antilhas, "negros da terra" (escravos indígenas), como os Tainos por exemplo; formaram quilombos e mocambos nas montanhas, num vasto movimento rebelde chamado cimarron pelos hispânicos. A chegada de escravos negros africanos no Caribe encontrou na marronagem ameríndia a continuação na América do quilombismo negro-africano. Sabemos como nas Guianas escravagistas holandeses, ingleses e franceses procuravam aliarem-se a índios livres para manter o cativeiro africano. E, mesmo assim, formaram-se grandes quilombos que sobrevivem até hoje no interior da floresta. Embora não existam registros, difícil não cogitar a respeito da eventualidade de fugas de escravos para formar distantes mocambos, já contando com a proteção de índios parceiros. Tal como se passou no Caribe com o surgimento de índios-pretos (black-indians), que entre nós se chamaram cafuzos.

A fonte a que Vicente Salles se refere, "F. Pena"; trata do naturalista Domingos Soares Ferreira Penna (1818-1888), pioneiro dos estudos amazônicos, nasceu em Mariana (Minas Gerais), em 6 de junho de 1818. Radicou-se em Belém do Pará, como naturalista viajante do Museu Nacional. Na oportunidade da passagem do naturalista suíço Louis Agassiz na Amazônia, Ferreira Penna fundou a Sociedade Filomática, em 1871, que foi embrião do Museu Paraense (atual Museu Paraense Emílio Goeldi), do qual foi o primeiro diretor.

Em 1870, Ferreira Penna descobriu a Formação Pirabas, uma das mais importantes áreas fósseis do Terciário no Brasil. O Museu Nacional registrou, em 1876 e 1877, duas importantes contribuições de Ferreira Penna sobre os sambaquis da costa oriental do Pará nas regiões “sombrias e pantanosas”, que ele escavou fazendo anotações sobre a arqueologia. Em 1882, colaborou com Ladislau Netto, diretor do Museu Nacional, na organização da Exposição Antropológica Nacional, o maior evento científico do Império do Brasil; levando-o em excursões científicas ao teso arqueológico do Pacoval, na ilha do Marajó e algumas aldeias indígenas no interior da província. 

O teso do Pacoval segundo José Coelho da Gama e Abreu, Barão do Marajó, AS REGIÕES AMAZÔNICAS - Estudos chorographicos dos Estados do Gram Pará e Amazonas, [Lisboa, 1895] Belém: SECULT, 2ª ed.,1992, pp.  316/317; foi escavado para pesquisas arqueológicas, "a primeira pelo sr. Bernard, sob direccão do sr. Fred. Hartt em 1870; a segunda pelo sr. Derby em 1871, a terceira pelo sr. Ferreira Penna um ano depois; e as duas últimas, uma pelo sr. Ladislau Netto, cujos bellos resultados figuram na exposição anthropologica que se realisou no Rio de Janeiro e ultimamente em Chicago, e outra pela commissão encarregada no Pará de obter productos para a exposição de Chicago ...", realizada em 1893. 
Ferreira Penna deixou publicadas as seguintes obras: A ilha de Marajó (1876); Apontamentos sobre os cerâmios do Pará (1877) e Índios de Marajó (1885); o fundador do Museu Paraense faleceu em Belém, em 6 de janeiro de 1888.

Afuá pode ser uma antiga referência da presença africana na Amazônia Marajoara? Quem quiser se aventurar aos caminhos da história das regiões amazônicas, carentes de fontes e periclitantes em suas diversas historiografias; não pode desdenhar de quaisquer hipóteses de pesquisa ou as muitas suposições que saltam à mente do viajante que se depara com o "espaço vazio" ou esvaziado pelos conquistadores do Rio Babel (Amazonas).

"Maldita hidra!", bradavam chefes de polícia do século XIX, incapazes de exterminar os quilombos que surgiam às margens das cidades e dos campos em todo o país. O historiador Flávio Gomes resgata essa e outras histórias da resistência escrava, tendo como cenário as comunidades de fugitivos dos séculos XVII e XIX no Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia e principalmente Grão-Pará e Maranhão.
Ao contrário do que se imagina, não eram apenas negros que povoavam quilombos. Esses agrupamentos contavam muitas vezes com indígenas e brancos entre seus moradores. A necessidade de sobrevivência obrigava os quilombolas a travar contato com a sociedade escravista por meio de comerciantes e até mesmo senhores. O livro desvenda o "pântano" das relações sociais e econômicas entre quilombos e sociedade escravista, ao mesmo tempo em que serve de metáfora para completar a Hidra, ser mitológico que tinha capacidade de regenerar suas cabeças ao serem cortadas. Assim como os quilombos, diante das tentativas de extinção pelas forças repressoras caíam e novamente se erguiam dos escombros, deixando até hoje reminiscências de sua luta e atividade." (Flávio dos Santos Gomes, A Hidra e os Pântanos: mocambos, quilombos e comunidades de fugitivos no Brasil (Séculos XVII-XIX), São Paulo: ed. UNESP, 2005. 

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