sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

O Negro na Cultura Marajoara






Apesar de uma admirável produção acadêmica a respeito do contributo negro africano na história colonial portuguesa na Amazônia, ainda resta margem para muitas suposições. Nesta canga bruta é que eu costumo lavrar. Para acadêmicos e supostos acadêmicos, suposições são desprezíveis posto que não devem se misturar às altas filosofias e aos salões dourados da nobreza intelectual. Os diletantes, como eu, tem dois caminhos à escolha: enfiar viola no saco e ir cantar na freguesia do folclore, onde quem conta um conto aumenta um ponto... Ou ficar de bico calado aprendendo aquilo que é idolatrado na casa grande como verdade sagrada. 

Mas. há ainda uma terceira chance, no limite entre o garimpo de velhos alfarrábios esquecidos e a intuição. É por esta que eu vou. O risco de dar com os burros n'água é considerável e o prêmio de achar alguma coisa que preste é nada... Tenho eu por mestres no assunto da negritude os poetas Bruno de Menezes, da Academia do Peixe Frito, e o amado Aimé Cesaire, da ilha da Martinica. Fiquei frustrado por ter ido a Fort-de-France com missão comercial do Estado do Pará e não ter oportunidade de falar com Cesaire que, na ocasião, estava em campanha eleitoral no interior... Paciência. 

Não posso negar influência do índio sutil Dalcídio Jurandir na minha formação política e intelectual. Eu era cego e não via o panorama social da ilha grande onde a gente vivia lado a lado entre brancos, pretos e pardos como Deus criou a mandioca utilíssima e a jararaca malvada... Foi através do romance Marajó que "tio Dal", à distância, morando ele no Rio de Janeiro abriu-me os olhos, por acaso em casa de minha avó Sophia, em Ponta de Pedras... O racismo toldava-me os olhos como a noite escura e eu nem desconfiava que existe a claridade do dia... Ah, mas como eu adorava ver um mulata requebrar numa festa de sábado, lá no Carnapijó! Ah, se eu pegasse essa mulata e minha mãe não soubesse da presepada... Pra casar só se fosse "filha de família": interessante que "branco" ou "preto" não exatamente a tês da criatura, mas a "cor" social... Bates -- Henry Walter Bates foi um naturalista e explorador inglês famoso por sua viagem à Amazônia, junto com Alfred Russel Wallace (co-autor da teoria da evolução das espécies, com Charles Darwin), com objetivo de recolher material zoológico e botânico para o Museu de História Natural de Londres --, ele explicou o caso do preto que virou branco por ter se tornado rico... Perguntaram-lhe, então: pode um preto ser rico? Brancos e pretos viviam, sim na maior tranquilidade; os senhores comendo, bebendo, enriquecendo e fazendo filhos bastardos por conta do boto sedutor de cabocas... E os pretos a bom labutar pra trazer à mesa farta dos senhores o de comer de todos os dias, pastorear o gado, matar onças e jacarés que atacavam bezerros e curar bicheira, ferrar a 'malhada' (manada)... 

Esta minha avó Sophia na verdade era minha tia, mãe de criação de meu pai Rodolpho Antônio (nome tirado do padrinho alemão amigo do capitão Alfredo e Antônio para lembrar Antônia, a índia morta no derradeiro parto depois de dar ao professor e marido a prole a começar de Sophia Tautonila, Raimundo, Laudelina Diva, Ambrosina e Otaviano Celso) irmão caçula dela, gêmeo do natimorto batizado Manuel. Minha avó verdadeira foi a índia mangabeuara Antônia Silva, que morreu de parto dos gêmeos do capitão da Guarda Nacional Alfredo Nascimento Pereira, dos quais somente sobreviveu o que veio a ser meu pai. 

Avó Sophia e tia Lodica foram minhas mestras de história da família Pereira, a casa era paresque um museu e o quintal um bosque enorme em plena vila de Ponta de Pedras. Quintal tão vasto que chegou a ter vaca leiteira para criar o irmão zinho órfão e depois o Sidraque Pereira, filho de dona Fuluca; moradora do Paricatuba, sítio Menino Jesus que tio Felipe português e tia Serafina índia da aldeia da Mangabeira, deixaram de herança para tia Laudelina Diva Pereia (Lodica)...

Então, que sou neto de índia marajoara com descendente cristão-novo (judeu convertido ao catolicismo), por parte de pai; e de imigrante camponês da Galiza (Espanha), meu avô Francisco (aliás Celestino) Varela e a branca Maria Joana Peres de Castro, minha avó Maroca; filha de dono de escravos, no sítio Fé em Deus, no Baixo Arari. Reza a lenda na história oral de minha família que esse meu bisavô espanhol foi um "bom senhor de escravos"... Minha santa mãe com suas irmãs e um único irmão gabavam-se da bondade do velho Pedro Peres de Castro, dizendo eles que depois da Lei Áurea (1888) os "pretos" do Fé em Deus continuaram lá, na maior harmonia com os brancos, e até alguns parentes daqueles ex-escravos que pertenceram a senhores maus vieram se chegar como novos moradores... 

Esta passagem sutil entre a antiga senzala e a barraca do futuro cabano muito me interessa. Sobretudo depois que escutei, mais ou menos aos seis ou sete anos de idade, acesa discussão entre meu pai caboco e minha mãe galega ele a dizer: cuidado comigo, eu tenho sangue cabano!... Sangue cabano eu também tenho? Lendo os Motins Políticos, do historiador da Cabanagem, descobri que um certo capitão do quartel de São José (anterior convento e depois presídio) chamado Gomes Varela se passou com tropa e armas para o lado dos revolucionários paraenses na madrugada de 7 de janeiro de 1835... Aí tem coisa! Castros e Varelas hoje há por toda parte, porém na primeira metade do século XIX, era forte a possibilidade de ser imigrante galego misturado a pobres portugueses refugiados da pobreza na Europa. 

Ah, sim!... Estava eu me lembrando do índio sutil (apelido dado por Jorge Amado a Dalcídio durante discurso na Academia Brasileira de Letras, durante entrega do Prêmio Machado de Assis de 1972); que na verdade era um "mulato" filho de dona Margarida Ramos, descendente de escravos em Ponta de Pedras, e do "branco velho" capitão Alfredo, devoto de Santa Rita de Cássia, nascido na vila de Benfica (Benevides), filho do voluntário da Pátria Raimundo Pereira... 

Pois o tal índio sutil, no romance Marajó (aliás, Marinatambalo), me mostrou a negritude marajoara... Missunga, ó Missunga!... No cair da tarde no rio Paricatuba aquele antigo chamado penetrava o chão de Dalcídio, varava o sometume mágico entre o lago encantado do Guajará e boiava lá no Caldeirão, no Paracauari para dali ir ao mar sem fim até o Congo angolano... Quem conta um conto aumenta um ponto. Esta é a liberdade dos diletantes, que não se fecham nas regras vetustas da historiografia oficial. Próximos da poesia e do romance como uma verruma para extrair da vida o espírito da coisa. 

Ah, mas quem vai ensinar padre nosso a vigário, reza forte a pajé e a evocar os vóduns a uma mãe de santo em casa de Mina? Pois Marajó é isto tudo e mais alguma coisa. Séculos de um apartheid latifundiário. A síndrome de Estocolmo já existia nas fazendas ao tempo das candeias e castigos no Viramundo (aparelho de tortura para castigar preto fujão). Vá lá no museu do Padre Gallo, mas não se assuste. Nem tudo lá é bonito de se ver. É só para despertar consciências adormecidas.

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