quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

Jornada ao ancestral lago Arari: coração da Cultura Marajoara de mil e tantos anos de idade.

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"Concluirei esta representação, que seria infinita a escrever tudo o que observei, dando a V. Excia. uma sucinta notícia do Arari. É o rio mais complicado, com voltas e rodeios que espero ver, de modo que, para de sua boca subir-se ao lago, é mais o tempo que se gasta em desandar as voltas andadas do que a avançar-se adiante. Pela sua beirada, de uma e outra partes, estão citas muitas roças e engenhocas de açúcar para as águas ardentes que tiram e fazendas de gado vacum e cavalar. É galante a história, digo, a teoria do rio que ouvi a um índio, sendo perguntado pela razão daquelas voltas e, portanto a escrevo:

A ilha, no seu princípio, diz ele, não tinha estes rios. Mas tinha, pela terra dentro, infinitas cobras. Estas, obrigadas das secas, corriam do centro para a costa a buscar a água. No caminho que faziam de rastos pela terra, deixavam, com o peso e grandeza dos corpos, impressas nela as suas figuras, assim mesmo tortuosas e implicadas em torcicolos, como elas são. Caíram as águas das chuvas sobre este rasto que achavam feito e, no seu princípio, abriram regatos. Engrossaram depois os regatos e ficou sendo o total, o grande rio, o que não fora no princípio mais que um regato da grossura de uma grande cobra."

Alexandre Rodrigues Ferreira, "Notícia Histórica da Ilha Grande de Joanes ou Marajó" (1783).






Vejam vocês estou tentando me "alembrar" do caboco novo que, antigamente, eu fui. Já fui feliz proprietário dum casco bem maneirozinho, todo talhado e trabalhado numa peça inteiriça de piquiá, que diz-que foi encontrado, por acaso, de bubuia na maré no meio da baía. O casquinho, paresque, havia fugido na correnteza de algum porto de sítio na beira do rio ou caiu n'água de bordo de alguma canoa geleira durante a travessia, talvez de noite em meio ao banzeiro. Minha mãe o comprou de um afilhado dela por apelido Satuca, que o havia achado e ela me deu o tal casquinho de presente.

Eu no meu casquinho valente, com bom remo de pitaica à mão, "sozinho e Deus", fiz muita navegação por rios e igarapés das redondezas do Curral Panema até Ponta de Pedras. Faço uma pausa aqui a fim de falar desta união inseparável entre o homem ribeirinho, seu remo e canoa: de todas madeiras de remo a pitaica é a de primeira qualidade (veja foto da árvore): 


O gênero desta árvore (Swartzia) têm grande potencial farmacológico (Foto: Arquivo TG)
O gênero desta árvore (Swartzia) têm grande potencial farmacológico (Foto: Arquivo TG). Nome científico Swartzia polyphylla , família Leguminosae , origem norte da América do Sul, Amazônia até as Guianas.

Além deste nome popular de pitaica, a árvore também é conhecida por paracutaca, paracanaúba, arabá e maracutaca. A árvore tem madeira de boa qualidade preferencial para fabricação de remos devido a leveza e durabilidade em contato com a água, dá lenha excelente para fogão da Criaturada ribeirinha que vive longe das cidades. Mas, voltando à vaca fria. Isto é o casquinho... No limite da capacidade de carga, o dito cujo com duas polegadas de altura fora d'água, aguentava além do jacumã (piloto) mais uma pessoa, contanto que essa  fosse magra, e ainda um paneiro de meio alqueire de farinha d'água. E nada mais... 
Todavia, por descuido meu, num certo dia de Finados quando o pessoal dos sítios vem à cidade acender velas no cemitério pelos seus mortos, o casquinho maneiro "fugiu" da ponte da Casa da Beira. Ou o mesmo foi levado do porto por algum caboco mais precisado que eu: na vida ribeirinha é assim, as coisas vão e vem na maré conforme a precisão da gente... E lá se foi embora meu casquinho de piquiá talhado por um bom carapina desconhecido! Masporém, a lembrança dele ficou pra sempre e ainda hoje nós fazemos boas viagens pelo rio das recordações. 
Revejo na paisagem da memória todas aquelas matas das paragens percorridas a remo, os igapós atalhando caminho de maré cheia a varar matas submersas de um rio a outro. Acredito que minha herança tapuia por parte de minha avó Antônia se me aflorava naquelas horas e paragens ermas. Eu ainda hoje sinto aroma de flores silvestres por via da recordação. Ouço, paresque, cantos de pássaros no alto das ramagens e ruídos sutis de peixes que, de repente, boiam à flor d'água. Assim refaço as viagens feitas na mocidade. Ou invento outras, por necessidade e acaso. Como esta aqui e agora antes que eu me vá embora desta para outra melhor no reino encantado. Sei que não hei de morrer, mas apenas me transformar em ave, bicho ou peixe: caruanas... 

Naquele tempo, fui menino ribeirinho num sítio de nome "Serrame", que foi comércio na era da Borracha e ficou de herança de meu avô galego Chico Varela para a família constituída de cinco filhas e um filho homem caçula, sito no rio Curral Panema, município de Ponta de Pedras, na ilha do Marajó. No fim da história, todo mundo foi embora pra cidade, e o "Serrame" ficou, pouco a pouco, devorado pela erosão do rio que lhes come ainda os barrancos pelas beiras.

Dos começos da viagem


Quando eu não tinha nada pra fazer, lá ia eu no meu casquinho maneiro ao sítio do compadre Manduquinha e comadre Didi, lá no igarapé Bacurituda à meia maré de distância: ele cara de índio aruã, ela preta retinta... Era um tal jogar conversa fora e comer camarão frito com pirão de açaí... Deixa estar que se hoje sou quase um "antropólogo" por conta própria e um quase pajé, devo isto muito a meus compadres do Bacurituba. Muita sabença diretamente da mãe natureza, com certeza, sob orientação dos mestres Manduquinha e Didi. Ela uma negra da Guiné da cabeça aos pés e ele um índio com amnésia... Naquela barraca de palhas de inajá e juçara, estava na cara, se misturavam sangue de índio e de preto que nem nos começos da história da colonização. Ali na varja não havia segredo entre o neto do branco galego e seus compadres mestiços. Deixa estar que minha avó postiça já me havia dito que a mãe de meu pai era uma tapuia, nascida lá na beira da baía, na Mangabeira. 

Esta herança facilitava as coisas para o meu lado, lá no igarapé Bacurituba. O melhor café torrado, pilado e passado na hora; açaí tirado do cacho à minha vista, amassado à mão e coada na peneira; camarão frito e assado na brasa acabado de pegar de lanciação ou gapuiação... Mas o melhor de tudo era a conversa boa na barraca do compadre à beira do igarapé cheia de encantaria. Pra encurtar a conversa, antes de falar de boto que vira gente, das misteriosas candeias que luzem que nem iluminação pela beira do campo e não queimam capim; caçada de alguma onça que ainda rondava por ali dando em cima da criação, curupira e cobra grande; digo logo que o compadre havia encomendado, no Itaguari, uma grande montaria de falca. Uma canoa que dava até pra meter nela quatro remadores por banda, mais o piloto de pôpa, que ia no jacumã. 

O banco do meio da montaria tinha buraco de costume pra enfiar mastro de vela de pesca, caso preciso fosse sair lá fora na baía a fim de estender espinhel com anzol de tenda pra pegar piraíba ou botar rede malhadeira. Com isto quero dizer que a montaria do compadre Manduquinha, se não era a maior, pelo menos seria uma das maiores montarias do Curral Panema. Quando a canoa chegou no Bacurituba, o compadre e a comadre estavam orgulhosos de sua posse. Aquilo era fruto de muito trabalho, oras com a colheita de açaí e oras com bacuri que dava nome o igarapé Bacurituba, significando "bacurizal". Acima de tudo, com a proteção do glorioso São Sebastião, a criação de porcos soltos na varja, masporém acostumados dormir no chiqueiro feito de toras de açaizeiro. Tudo entregue a marreteiro para levar à feira do Ver O Peso na igarité de fretes chamada "Fé em Deus", propriedade do senhor Dário Cabral, dono do comércio local, no sítio Ourém, localizado no Rio Canal.

O compadre trouxe tinta do comércio do 'seu' Dário Cabral para dar acabamento à montaria. Pintou-a com capricho nas cores vermelho e azul com traços brancos vistosos. Todavia, aconteceu um problema. Foi na hora de batizar a canoa. Manduquinha queria que ela se chamasse "FAVORITA", em letras graúdas, escritas na proa sobre a falca. Até aí, tudo bem... Masporém, nem o compadre nem a comadre sabiam ler e escrever, tampouco os pirralhos ainda pequenos, o mais velho era macho e o resto quatro meninas, uma ainda jitinha mamando no peito. Foi assim que coube a mim abrir as letras com o nome da montaria.

Ora, a "Favorita" foi a tal montaria desta estória que se conta agora. Levando eu e meu camarada Vadico, pouco mais ou menos, três dias e três noites desde o Bacurituba, igarapé tributário do rio do Canal; até o Jenipapo, na Boca do Lago (arari); com a canoa chapada de mercadoria, casca de muruci e banana; pra fazer escambo com peixe seco. O Vadico no caso é nome postiço. Pois, me aconteceu depois, quando eu já era da cidade grande e virei repórter de polícia de contar o caso como o caso foi e o meu camarada meteu-se numa encrenca dos diabos com mulher alheia terminando em briga feia, na feira, acabando no Pronto Socorro. O besta que sou eu publicou o nome verdadeiro do tal "Vadico". E por castigo perdi o amigo. Em compensação, o camarada se endireitou, melhorou de vida e finalmente virou pastor. Olha lá, quando a gente se mete numa canoa a fazer marretagem pelas ilhas. 

Fomos e voltamos com a "Favorita" até o lago Arari a cabo de remo. Meu camarada Vadico tinha um ou dois anos de idade a mais que eu, era o mais entendido e já conhecia o caminho do rio até Cachoeira. Eu ainda não havia passado da ilha de Sant'Ana nem uma remada rio acima. Meu negócio, na verdade, era conhecer o lago falado por meus velhos. Na volta pela parte que me toca, uma malária a mais no currículo. Como diz o outro, tudo vale a pena se a alma não é panema... 

Agradeço à vida por me haver dado tanto. Na próxima postagem a gente conta como se passou esta viagem de começo ao fim. Aqui vai um abraço grande aos canoístas amigos, com votos de que continuem, cada vez mais, remando e descobrindo a paisagem da Criaturada grande de Dalcídio pelos nossos rios. Até logo. 

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