sábado, 20 de janeiro de 2018

Analau Yohynkaku: uma ideia para extensão ecocultural em rede comunitária no Marajó.



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para além dos famosos "cacos de índio" e caruanas que inspiraram talvez Vadiquinho a provocar o padre Gallo para inventar O Nosso Museu do Marajó, já os ditos cacos transformados em motivos ornamentais a fim de restaurar a Arte marajoara primeva: carece ainda ressignificar o Índio ancestral extinto entre chuvas e esquecimento pelo império iluminista português no famigerado Diretório dos Índios (1757-1798), libertar através da educação integral o povo "caboclo" envergonhado de sua descendência afro-indígena, acessar o inconsciente coletivo na preservação do bioma do delta-estuário amazônico; romper cadeias do passado escravagista para vencer a colonialidade e soltar as amarras da pobreza. Dar vez e voz à Criaturada grande de Dalcídio para ela se empoderar, afinal, do maior arquipélago fluviomarinho do Planeta e tomar consciência de sua própria história.




aos amigos e amigas do Museu do Marajó
e do Museu Paraense Emílio Goeldi, com carinho.

SAUDAÇÃO DE DOM JOSÉ LUIZ AO PLANO MARAJÓ.

"O objetivo deste Plano é o desenvolvimento humano, integral e solidário de todo o Marajó. Portanto, o seu centro é o homem e a mulher marajoara. Ser mais homem, passando de condições menos humanas a condições de vida mais humanas e procurando, não somente ter mais, mas ser mais. Trata-se do desenvolvimento do homem todo e de todos os homens do Marajó sem reduzi-lo a aspectos parciais, mas aberto a todas as exigências da dignidade humana, sem excluir a sua orientação à vida eterna, a Deus, elemento essencial da identidade e cultura marajoaras. O protagonista deste Plano é o homem marajoara. Ele deve ser o sujeito principal do seu próprio desenvolvimento. A sua liberdade irrenunciável ajudada pelo estímulo, sabedoria e acompanhamento dos técnicos deste Plano, fará de si mesmo um ponto de partida insubstituível para a promoção humana e autêntica libertação sem as quais não será possível uma ordem justa e solidária no Arquipélago. A fragilidade do tecido social marajoara exigirá o respeito, a simpatia e a proximidade dos técnicos em cada uma das etapas de implementação deste Plano a fim de preservar e promover a identidade deste conjunto singularíssimo de ecologia humana que chamamos Marajó. Este Plano não pode ser mais um exemplo de colonialismo atualizado por uma implantação não-participativa do mesmo, mas o início efetivo de um Marajó respeitado na sua liberdade e no direito de forjar seu próprio destino histórico. Uma das características mais marcantes da elaboração deste Plano, desde a apresentação do primeiro esboço do mesmo, foi a sua transparência ética. Qualquer suspeita de corrupção a qualquer nível na realização deste Plano acabaria imediatamente com sua identidade e com a esperança, que adormecida durante séculos, este Plano suscitou no coração do povo."

Soure-PA, 30 de setembro de 2007 
D. José Luiz Azcona Hermoso, OAR 
Bispo da Prelazia do Marajó 

PLANO MARAJÓ - PLANO DE DESENVOLVIMENTO TERRITORIAL SUSTENTÁVEL DO ARQUIPÉLAGO DO MARAJÓ.



O nome autóctone da ilha do Marajó é Analau Yohynkaku, palavra do pajé aruã Anselmo José, segundo Domingos Soares Ferreira Penna, fundador do Museu Paraense Emílio Goeldi.

Entre chuvas e esquecimento, o homem do Pacoval com seus 1.600 anos de idade no alto do teso do igarapé do Severino, contempla a ignorância do Brasil moderno a respeito da Arte marajoara achada por acaso no dia 20 de novembro de 1756, fruto da primeira cultura complexa da Amazônia (cf. Cultura Marajoara, Denise Schaan: SENAC, São Paulo, 2010). Deste mesmo sítio arqueológico próximo à vila de pescadores do Jenipapo, no lago Arari, saíram provavelmente os "cacos" de cerâmica de que o padre Giovanni Gallo (Turim, 1927 - Belém do Pará, 2003) descreve em Motivos Ornamentais da Cerâmica Marajoara , em sua tentativa de provocar vida nova para a velha arte dos índios extintos da ilha do Marajó. 

Sem saber, no ano de 1973, o padre dos pescadores e vaqueiros havia criado por acaso, no lugar mais certo, o primeiro ecomuseu brasileiro contemporâneo ao primeiro do mundo nesta modalidade da nova museologia, inventado na região da Borgonha, França, conforme o conceito inovador formulado pelos franceses Georges Henri Revière e Hugues de Verine. Em fins do século XIX, entretanto, conforme José Coelho Gama e Abreu (Barão de Marajó) na obra As Regiões AmazônicasDomingos Soares Ferreira Penna (1818-1888), o fundador do Museu Paraense Emílio Goeldi; e Ladislau de Souza Mello Netto (1838-1894), diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro, haviam tirado e levado diversas urnas funerárias e peças de cerâmica do sítio arqueológico do Pacoval. Dentre as quais as que foram mostradas na Exposição Universal de Chicago (1893). Desde então, este patrimônio milenar marajoara se acha em grandes museus nacionais e estrangeiros. 

Diante do fato, um pobre paraense qualquer que tenha tido a chance de aprender a ler ao saber do espinhoso assunto pode pensar que só restaram "cacos de índios" aos cabocos do Marajó. Sem meios para ir ao exterior ver onde foram parar os tesouros antigos encontrados por nossos colonizadores e mesmo para ir a Cachoeira do Arari não lhe seria fácil. Este suposto paraense da classe baixa da sociedade poderia talvez sonhar com o repatriamento da cerâmica que está no exterior. Ou, pelo menos, ter oportunidade de vez em quando de visitar exposições franqueadas ao povo mais perto de casa. Vem daí a ideia de uma boa parceria entre o museu comunitário do padre Gallo, O Nosso Museu do Marajó, com sede em Cachoeira do Arari; e o museu científico paraense fundado por Ferreira Penna, o nosso renomado Museu Goeldi: uma extensão ecocultural em rede comunitária a partir da Flona Caxiuanã integrando municípios parceiros na mesorregião do Marajó.


Que melhor título para batizar esta ideia provocadora que o nome autóctone da admirável ilha de nossa primeira civilização amazônica em língua aruã, recolhida da ruína humana, com paciência e admiração pelo sábio Ferreira Penna? Sugestão de projeto Analau Yohynkaku. Primeiro passo para popularização da exposição comparativa dos rios Amazonas e Nilo, em acordo entre o Museu Goeldi e Museu do Cairo, adiada para melhores dias após a chamada "primavera árabe", que na verdade está custando a se normalizar. Por aí também a tomada de consciência pelas comunidades sobre a diáspora do patrimônio marajoara. 


Com pensamento na encíclica Louvado Seja, do Papa Francisco, no que concerne às regiões amazônicas face ao fenômeno avassalador da globalização; uma reflexão defensiva local sobre a antiguidade da ecocivilização amazônica deveria ser tentada, na perspectiva planetária de Ignacy Sachs a começar pela antiguidade da Amazônia. Há que se pensar um Marajó grande para inventar o Século XXI. Trazer da beira onde ainda está para o centro da história, a criaturada grande de Dalcídio Jurandir. Aos pajés não é totalmente estranha a noção de noosfera, cientificamente antecipada como evento evolutivo por Pierre Teilhard de Chardin, paleontólogo francês e o geoquímico russo Vladimir Vernadsky.
O processo histórico está mudando drasticamente diante de nossos olhos … A humanidade tomada como um todo está se tornando uma poderosa força geológica. A mente e a obra da humanidade enfrentam o problema de reconstruir a biosfera no interesse de pensar livremente a humanidade como uma única entidade. Este novo estado do mundo que nos aproximamos sem perceber é a ‘Noosfera’." -- Vernadsky
Porém, o mundo pensado "globalmente" e exclusivamente por uma pequena elite superletrada e fechada em si mesma em sua sabedoria em feudos institucionais e enclaves urbanos de ricos condomínios cercados de violência e pobreza por todos os lados é infeliz continuação geográfica pós-moderna de impérios passados. 

Mas, na recém conquistada Amazônia do século XVII, a utopia evangelizadora do padre grande dos índios, Antônio Vieira, foi precursora da teologia da libertação e fecundadora da paz messiânica entre judeus, cristãos e islâmicos. Raros especialistas estudam isto. Curiosamente, no pontificado do primeiro papa jesuíta sul-americano, este reino de Jesus Cristo consumado na terra teve inícios em Cametá e na ilha do Marajó (cf. Silvano Peloso, Antônio Vieira e o Império Universal: A Clavis Prophetarum e os documentos inquisitoriais: Rio de Janeiro, de Letras, 2007). E a inteligência coletiva, segundo Pierre Levy, se alastra em ondas da Internet fomentando reflexão da noosfera.

Gabriel Garcia Marques dizia que, em tempos modernos, o corpo viaja a bordo de avião a jato, mas a alma coitadinha ainda vem de caravela. Assim também a computação eletrônica e a internet disponibilizam a babel de antigos arquivos, porém nem todos tem computador e banda larga. No Marajó mais da metade da população é analfabeta. Poucos tiveram notícia da viagem secreta, de 1498, do cartógrafo Duarte Pacheco Pereira a serviço de Dom João II de Portugal, a fim de fazer observações astronômicas in situ da linha do tratado de Tordesilhas de 1494, entre as terras atribuídas a Espanha e Portugal possibilitando, seguramente, o "descobrimento" (revelação) do Brasil; viu ele o vasto arquipélago do Marajó contíguo à terra grande que, mais tarde, com recurso da língua tupi seria traduzida ao português como o Maranhão e Grão-Pará ou Amazônia. Esta teria sido, provavelmente, a primeira notícia das muitas gentes que habitavam as ilhas da foz do rio Amazonas.

Quatro meses antes da frota de Pedro Álvares Cabral chegar a Bahia, em 1500, o navegador espanhol Vicente Yañez Pinzón chegou ao Ceará tomou o rumo norte viu a foz do Amazonas, assaltou uma aldeia capturando os 36 primeiros "negros da terra" (escravos indígenas) da América do Sul. Pinzón escreveu que a tal ilha se chamava Marinatambalo. Em 1939, na vila de Salvaterra, então distrito do município de Soure; o escritor Dalcídio Jurandir (Ponta de Pedras, 1909 - Rio de Janeiro, 1979) elaborou seu primeiro romance Chove nos campos de Cachoeira e o segundo ao qual ele chamou de Marinatambalo, publicado como Marajó, saudado pela crítica como o primeiro romance sociológico brasileiro. 

Na longa e periclitante crônica colonial no século XVII a dita ilha era denominada Ilha dos Nheengaíbas, nome dado pelos tupinambás inimigos hereditários dos insulanos e adotado pelos portugueses, habitada por numerosas "tribos" falantes da "língua ruim" (nheengaíba). A primeira tentativa de catequese dos índios pelos Jesuítas terminou em tragédia na Baía do Sol e morte do padre Luiz Figueira e seus companheiros nas praias de Joanes, na ilha do Marajó, aonde foram encostar numa jangada improvisada levada pela correnteza e o vento. 

O navio que levava o novo governador da província, Pedro de Albuquerque e o padre Figueira como superior da missão acompanhado de quatorze jesuítas, naufragou entre 29 e 30 de julho de 1643. Sobreviveram apenas 42 pessoas entre as 173 que estavam a bordo. Luís Figueira com mais nove jesuítas conseguiram chegar à ilha de Marajó, mas morreram vítimas, alegadamente, dos "aruans", relato de Nicolau Teixeira, sobrevivente, mortos um a um ao longo de vários dias.

Não sabemos quem disse ao informante Nicolau Teixeira que os matadores das praias de Joanes eram aruãs. Todavia, vimos que depois de ilha dos Nheengaíbas, o Marajó passou a ser chamado ilha dos Aruans. Estes ganharam fama de canibais ferozes e o próprio padre Antônio Vieira deu curso à esta opinião, certamente errônea e veiculada pelos antropófagos tupinambás que caçavam indígenas inimigos para servir aos brancos como escravos. Já se sabe através de Florestan Fernandes e outros, que a religião dos Tupinambá era a vingança e que os famigerados Nheengaíbas eram muitos e diversos, nenhum deles praticava a antropofagia, mas todos constituíam uma pedra no caminho do mito da Terra sem Mal. Utopia tupi-guarani selvagem que trouxe de longe os andejos guerreiros conquistadores da Amazônia. Condenados pela visitação do Santo Ofício na Bahia (1591) por heresia da Yby Marãey (terra sem mal) convertida em catolicismo indígena, segundo Ronaldo Vainfas (A Heresia dos Índios: Catolicismo e rebeldia no Brasil colonial / Ronaldo Vainfas - São Paulo: Companhia das Letras, 1995).

Não exatamente, Mbarayó (barreira do mar"), porém os "índios malvados" (Marajó, do tupi-guarani marãyu), senhores das ilhas, guerrilheiros natos de emboscada com zarabatanas feitas de paxiúba e dardos envenenados de curare, com talos de patauá; eram invencíveis na guerra. Exceto quanto o abaeté tinha ajuda de arcabuzeiros portugueses armados de "pau de fogo". A ilha do marajó matador teve este nome, segundo fontes jesuíticas do século XVII, por conta do rio Marajó-Guassu (Marajó-Açu) que deu nome a toda ilha (cf. Serafim Leite, História da Companhia de Jesus no Brasil, tomo IV, Rio de Janeiro, 1946). Era dizer em bom português moderno, "rio grande dos marajó".

Antes de ser chamada, correntemente, ilha do Marajó; aliás Analau Yohynkaku; Marinatambalo, ilha dos Nheengaíbas e ilha dos Aruans; a dita ficou conhecida, entre 1665 até cerca de 1757, como a Ilha Grande de Joanes doada como capitania hereditária ao secretário de estado português Antônio de Sousa de Macedo e seus descendentes Barões de Joanes. Muitos indagaram que Joanes ou Joannes era este. Alguns pensaram em algum holandês perdido na historiografia colonial. Uma boa dica foi fornecida pelo sargento-mor de milícias da vila de Monforte (antiga vila de Joanes), Severino dos Santos, índio sacaca contando ele cerca de 70 anos de idade e falando português razoavelmente (ver o naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira, Notícia Histórica da Ilha Grande de Joanes, ou Marajó, Lisboa, 1783).

Citado pelo sábio de Coimbra em longo aparte, Severino dos Santos traz a lume preciosas informações para revisão histórica sobre a ilha do Marajó. Conta ele como seu povo desde priscas datas (a arqueologia aponta a um horizonte cerca de 1300), prova do vigor da história oral em sociedades tradicionais; foi empurrado pelos belicosos Aruã dos centros da ilha para a costa oriental entre os atuais municípios de Salvaterra e Soure e a guerra contínua travada, desde então, entre as duas velhas etnias marajoaras até a batalha final, em Água Boa (Salvaterra), 1686 mais ou menos, com a vitória definitiva de sua gente aliada aos portugueses dali em diante como amigos. 

Fica claro que o nome "Joanes" é corruptela em língua portuguesa do etnônimo Iona ou Yona, os quais nas tratativas do pacto de amizade com os portugueses contra os inimigos Aruã receberam apelido de Sacacas (de sakakun, urgente, depressa). O tuxaua dos yona apressava seus parentes a terminar logo a tarefa na construção da fortaleza da Barra, apalavrada como obrigação dos tais "joanes" para levar tropa armada a sua aldeia sob risco de sofrer novo ataque dos aruã, repetindo o cacique a palavra de ordem sakakun, sakakun (depressa, depressa). 

Foi assim, disse o velho Severino a Alexandre Rodrigues Ferreira, que os "joanes", aliás Yona; ficaram conhecidos dos portugueses como sacacas. Eu penso que esse índio Severino Sacaca ou sargento-mor Severino dos Santos poderia ter sido guia de confiança do inspetor Florentino da Silveira Frade durante a investigação oficial de 1754 que, por sua vez, foi principal informante de Alexandre Rodrigues Ferreira na viagem filosófica de 1783 ao Marajó. Sabemos que o governador Francisco Xavier de Mendonça Furtado encarregou a Florentino da Silveira Frade de realizar, confidencialmente, inspeção das fazendas dos jesuítas preparatória à expulsão e confisco de bens da Companhia de Jesus na ilha de Joanes. Quase com certeza, como parte do relatório de inspeção na metade daquele século, Florentino Frade por diversos indícios podeira ser o autor anônimo da Notícia da Ilha Grande de Joannes, tão parecida em tudo com a segunda notícia do final do século XVIII, a Notícia Histórica. As duas notícias da Ilha Grande de Joanes ou Marajó devem ser comparadas em detalhes. 

O destaque do sacaca Severino dado pelo naturalista de Coimbra, não se acha no autor anônimo da primeira notícia. Todavia o nome do igarapé do Severino a caminho do teso do Pacoval do rio Arari, descoberto por Florentino Frade em 1756, diz Alexandre Ferreira; poderia ser reminiscência daqueles tempos obscuros onde o inspetor não poderia ir descobrir sozinho a ilha desconhecida dos colonos sem guias indígenas de absoluta confiança. Basta saber que nenhuma sesmaria pôde ser ocupada antes de 1680, quando Francisco Rodrigues Pereira levantou o primeiro curral de gado face ao perigo dos índios bravios. Isto é, dos bárbaros Aruã, desertores e escravos refugiados que viviam em quilombos nos centros da ilha. Origem da terra de ninguém que se chama a Jebre, na geografia marginal da famosa ilha.

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Se para imensa maioria de marajoaras, diante deste cenário é verdade histórica as esperanças expressadas pelo bispo Dom Frei José Luiz Azcona ao saudar o lançamento do inédito Plano Marajó ou qualquer outro instrumento com a mesma finalidade; tudo isto até agora está longe de satisfazer os objetivos firmados neste documento de planejamento regional e participação federativa. Por outra parte, não dá para dizer que nada do combinado não foi feito. Trata-se de um marco histórico dentro de longo processo de descolonização da Amazônia brasileira, que deve prosseguir e se aprofundar doravante, pari passu, aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 Marajó

Era aqui que eu queria chegar, com a sugestão de que juntos os "cacos" do Museu do Marajó e a pesquisa científica do Museu Paraense Emílio Goeldi dialogassem para formalizar rede de extensão comunitária interessando a todos municípios do Marajó.
Na sábia lição de Nelson Sanjad, em Ciência de potes quebrados: nação e região na arqueologia brasileira do século XIX, aprendemos sobre a importância do velho Marajó para o Museu Nacional e a criação do Museu Paraense Emílio Goeldi: a analogia remete-nos imediatamente à lembrança dos "cacos" do Museu do Marajó no relato de Giovanni Gallo45 anos depois, hoje nós temos compreensão de que a invenção de O Nosso Museu de Santa Cruz do Arari (1973), pelo padre dos pescadores ajudado por pequeno número de amigos da própria comunidade local; representa de fato a criação do primeiro ecomuseu brasileiro, contemporâneo ao primeiro ecomuseu do mundo, em  Creusot-Montceau-les-Mines, na França. 

Que importância isto poderá ter para a comunidade de municípios da Amazônia Marajoara? Em primeiro lugar, a formação de uma consciência regional forte e de opinião pública favorável ao desenvolvimento sustentável integrado do território federativo (comunidade regional dos 16 Municípios Marajoaras, Estado do Pará e União Federal) com base na Constituição da República Federativa do Brasil e da Constituição do Estado do Pará, notadamente no espírito do Parágrafo 2º, VI, do Artigo 13 desta última:

"O arquipélago do Marajó é considerado área de proteção ambiental do Pará, devendo o Estado levar em consideração a vocação econômica da região, ao tomar decisões com vista ao seu desenvolvimento e melhoria das condições de vida da gente marajoara."

Acha-se assim, o arquipélago do Marajó entre os bens do Estado do Estado do Pará. No entanto, a Área de Proteção Ambiental a que se refere, decorridos 29 anos, ainda não se pode dizer que está devidamente implantada a ponto das populações municipais perceberem benefícios dela para "melhoria das condições de vida da gente marajoara": menos ainda não se escuta dizer que o projeto da Reserva da Biosfera do Marajó, baseada na mesma APA, teve finalizada sua candidatura nos termos requeridos pela Comissão Brasileira do Programa Homem e Biosfera (COBRAMAB) para obter o reconhecimento da UNESCO entre as sete reservas da biosfera brasileiras, conforme os respectivos biomas Mata Atlântica, Cinturão Verde da Cidade de São Paulo, Cerrado, Pantanal, Caatinga, Amazônia Central e a Serra do Espinhaço.

Embora desejáveis, grandes investimentos industriais em Barcarena, e em breve a construção de plataforma de transbordo de grãos em Ponta de Pedras (Marajó), aumento de movimentação de navios cargueiros e balsas com produtos oriundos e com destino a Manaus, Santarém e Macapá pelos Furos de Breves; agravam velhos problemas de segurança pública e conflitos sociais, que o estado não pode controlar e minimizar sem participação efetiva da sociedade organizada e das comunidades locais diretamente afetadas. É disto que se trata quando pensamos numa rede de extensão educativa sócio-cultural a partir de parceria estratégica entre o Museu Goeldi e Museu do Marajó, este representando a comunidade e aquele em seu papel científico através, possivelmente, da extensão da Estação Científica Ferreira Penna (ECFPa), em Caxiuanã, junto com o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biobiversidade (ICMBio).

Ora, Marajó é uma complexa região de ilhas (microrregiões de Arari e Breves) e continente (microrregião de Portel) com área geográfica de 104 mil km²; território maior que o do estado do Rio de Janeiro, por exemplo. Possui população de mais de 500 mil habitantes distribuídos em algo como 2.000 ilhas, fluviais e marítimas, que somam mais de 500 comunidades locais isoladas. Neste espaço atuam, conjuntamente, autoridades municipais, estaduais e federais não tão harmoniosamente, como devia ser em conformidade com os ditames legais.

Diferente dos museus convencionais, o ecomuseu é um território conforme conceito museológico inovador atribuído aos franceses Georges Henri Revière e Hugues de Verine, posto em prática na década de 1970. Neste tipo de museu, membros de uma comunidade tornam-se atores da formação, realização e manutenção do mesmo, sendo ou podendo ser em algum momento, assistidos por museólogo e apoiado por entidades públicas ou privadas. O ideal de uma rede de 16 ecomuseus municipais poderia começar por extensão conjunta do MPEG e Museu do Marajó junto à Associação de Municípios do Arquipélago do Marajó (AMAM) e o Ecomuseu da Amazônia / Fundação Escola-Bosque Eidorfe Moreira.

Lamentavelmente, não há evidências de que Giovanni Gallo tivesse conhecimento do conceito de ecomuseu. Acredito que se ele soubesse o colocaria em prática com menos dificuldade de um museu comunitário convencional como fez com parcos recursos e incipientes conhecimentos. Da leitura de seus livros fica-se sabendo que ele era leigo no assunto e aprendeu fazendo junto com a comunidade. Todos sabemos que o padre dos pescadores não havia inicialmente intenção de fazer nenhum tipo de museu no fim do mundo. Estou persuadido de que, naquele tempo, se ele soubesse o que é ecomuseu, teria obtido maiores resultados na comunidade de Jenipapo e Santa Cruz com menor esforço e talvez evitado grande parte de incompreensões e sofrimentos pessoais que relata no amargo livro de memórias O homem que implodiu

Atenho-me em especial ao fato narrado, nas primeiras páginas de Motivos Ornamentais da Cerâmica Marajoara, sobre a provocação que Vadiquinho lhe fez com um embrulho de "cacos de índio" (fragmentos de cerâmica marajoara recolhidos de extrações ilegais, geralmente, de sítios arqueológicos chamados "tesos" (aterro) localmente). O contributo comunitário fica patente na invenção do incipiente museu. Imagino, então, que a singeleza das primeiras coleções do Nosso Museu de Santa Cruz do Arari, ditadas pela necessidade mãe de todas invenções, poderia logo - na figura de ecomuseu -, alcançar a grandeza do território insular que Antônio Vieira descreveu ao Rei como a maior conquista de Portugal na Amazônia: "Na grande bôca do rio das Amazonas está atravessada uma ilha de maior comprimento e largueza que todo o reino de Portu­gal e habitada de muitas nações de índios, que, por serem de lín­guas diferentes e dificultosas, são chamados geralmente Nheengaíbas" (carta de 29/11/1659, publicada em Lisboa em 11/02/1660).

Em 1877, em Afuá, na Ilha de Marajó, o naturalista Domingos Soares Ferreira Penna coletou uma lista de palavras e frases da língua Aruã, "colhidas da bocca do ultimo representante desta tribu extincta". Publicada em 1881 nos Archivos do Museu Nacional do Rio de Janeiro, a lista (contendo um total de 224 itens) vem a ser, ao que parece, a única fonte publicada sobre esta língua, pertencente à família Arawak ao contrário do que supunha Ferreira Penna, que afirmava serem os Aruã "um velho ramo" dos Karib. O artigo de Ferreira Penna, disponível na Biblioteca Digital Curt Nimuendaju, constitui exemplo raro, para a época, daquilo que hoje se costuma chamar "salvage linguistics": o esforço deliberado para documentar-se uma língua à beira da extinção. Além dos dados publicados por Ferreira Penna - fornecidos pelo velho pajé Anselmo José, então com cerca de 75 anos de idade -, tem-se notícia de um vocabulário de 30 palavras coletado por Nimuendaju na região do Rio Uaçá, Amapá, em 1926 (Nimuendaju 1948:195).




Urna funerária marajoara, c. 1000-1250 d.C., Museu Americano de História Natural.


"Deus criou o homem para dormir e sonhar", disse o índio da heresia da Bahia de Todos os Santos face ao inquisidor da visitação do Santo Ofício. Sonhar a Terra sem males. Mas, no espaço plano o empolgante mito tupi-guarani não poderia jamais ser localizado em nenhum lugar onde não houvesse fome, trabalho escravo, doença, velhice e morte. Pena que, no rio Babel, nheengaíbas e tupis apenas batizados e pacificados pelo padre judaizante da utopia do Quinto Império, quando começaram a falar a língua-geral o Diretório de Pombal decretou a extinção dos índios fazendo deles súditos e vassalos da coroa portuguesa. Todavia, através da Ciência e Tecnologia progressivamente, no espaço de Einstein, "potes quebrados" tornam-se pesquisas científicas e "cacos de índio" viram arte pouco a pouco dando concretude ao velho sonho dos antepassados.