quarta-feira, 3 de abril de 2019

Notícia do Rio do Canal na ilha nova de Ponta de Pedras, na ilha do Marajó,

A imagem pode conter: ar livre, água e natureza
Rio da Fábrica (antigo Igarapé Puca), que com a abertura do Canal interligado ao Curral Panema e ao rio Marajá-Açu formou a ilha nova de Ponta de Pedras, na ilha do Marajó (segunda metade do século XIX) na jurisdição da Vila da Cachoeira (Cachoeira do Arari). Foto: Michel Rodrigues. 




dantes carecia a volta grande do Moirim e Arapiranga para varar do rio Arari ao rio Marajó-Açu: velho caminho de índios bravios e mocambos. 

Antigamente, quem vinha da beira da baía do Marajó por terra até o lugar Ourém podia vir a pé e passar aos campos-gerais da ilha grande do Marajó. Ainda não havia o Rio do Canal, Enseadinha nem Terras Caídas... Claro que levaria dias e dias de caminhada. A partir do ano de 1680, o português Francisco Rodrigues Pereira vencendo o medo dos índios bravios, desertores e escravos fugidos que ocupavam os centros da ilha; levantou o primeiro curral de gado no rio Mauá, tributário da margem esquerda do Arari. Daí em diante, pouco a pouco, começou a colonização na ilha grande do Marajó e quem houvesse cavalo poderia ir até ao Lavrado, entre Muaná, Cachoeira, Anajás e Santa Cruz do Arari. 

Para ir do Itaguari ou de Mangabeira para Cachoeira pela costa da baía, só pescador acostumado à maresia ou igarité grande. Naquele tempo os brancos para ir pelo rio de Ponta de Pedras a Cachoeira carecia fazer rancho, contratar remadores, alugar montaria grande, armar panacarica e pernoitar no meio do caminho em casa de conhecidos, fosse no Serrame, Fé em Deus ou no Araquiçaua conforme o tempo da maré. 

Terá sido ao tempo do Barão do Marajó, José Coelho da Gama e Abreu; no governo da província do Pará (ano de 1879 até 29/03/1881) que o canal do Ourém foi escavado e virou Rio do Canal mais tarde. Por que eu penso desta maneira? Na conhecida obra "As regiões amazônicas" o Barão deixa claro seu interesse pela abertura de canais artificiais na ilha do Marajó a fim de melhorar a indústria pecuária. Fala ele no canal das Tartarugas e do Mocoões como coisa do futuro, mas nada escreveu sobre o canal do Ourém. Certamente o Barão do Marajó conhecia a história da construção do canal de Igarapé Miri que, em 1821, reabriu o Furo Velho que estava impraticável à navegação e poderia com esta experiência autorizar tentativa para tentar fazer coisa parecida a fim de encurtar o longo percurso fluvial entre as vilas da Cachoeira e de Ponta de Pedras.  Acredito que foram moradores do Igarapé Puca (Rio da Fábrica), que uniram meios e escravos para começar a escavar o canal....

Não estou dizendo que foi o Barão de Marajó quem, de fato, mandou abrir o canal do Ourém, mas apenas aventando a hipótese... Sem máquina de dragagem confiados tão-só em pás, enxadas e alvião para trabalho braçal escravo, o fatal acidente do canal de Igarapé Miri acabou se repetindo na tragédia de Terras Caídas, do chamado Canal com mortos soterrados debaixo de barro e lama que teria desabado de taludes na obra então improvisada. Pode-se imaginar uma simples vala que, com o tempo, a força das água e a erosão se incumbiram de alargar e aprofundar: e nunca mais as ribanceira do Canal, Terras Caídas, Meia Noite e Serrame pararam de cair invernada após invernada... 

A criação do município de Ponta de Pedras, em 1878, terá sido incentivo para pedir autorização e recursos do governo da província na obra que não poderia ser executada mais com trabalho escravo depois de 1888. Enxergo, então, na década de 1878 a 1888 a construção do Canal em tela. Mas, não achei fonte histórica confiável...

O terreno escavado era um considerável teso de latossolo, cujos vestígios geológicos ainda se podem ver nos barrancos erodidos dos sítios Meia Noite e Serrame, situados respectivamente nas margens direita e esquerda do Rio Canal; cuja erosão nunca termina a escavação começada há mais de cento e tantos anos. Como se por acaso fantasmas de escravos mortos soterrados de Terras Caídas não terminassem o canal e a correnteza que se formou desde que as águas do Marajó-Açu e do Arari se confundiram com a baía adentro passando pelas ilhargas da ilha nova que se formou com o Canal na impetuosa correnteza tanto na enchente quanto mais na vazante, todos os dias com a força da maré. 

Consta que antepassados do casal afrodescendente Amâncio e Rosa Costa receberam as terras de Enseadinha em recompensa pelos trabalhos de escavação do canal, talvez em recompensa de parentes mortos, lágrimas de dor e o suor derramados tenham eles recebido também carta de alforria até, finalmente, a pífia Abolição de 1888. Quem sabe?

O Canal dividiu o antigo sítio Ourém em duas bandas fronteiriças: do lado direito em direção ao Curral Panena, ficava o sítio do sumano Zecão (José Maria do Livramento), dono da igarité "Nossa Senhora de Fátima" (apelidada "Jiboia", muito bojuda, por erro de construção). Acho que seus antepassados podem ter vindos do arquipélago dos Bijogós, na Guiné-Bissau, que eram negros muito valorizados pelo vigor físico e a estatura, servindo a seus senhores escravagistas e feitores como capangas e reprodutores para melhoria do plantel de cativos: estas não são coisas fáceis de dizer, mas a verdade é o primeiro passo para a justiça e a paz. 

A história não é para os mortos, mas para os vivos das presente e futuras gerações... O mesmo nome Ourém ficou para o sítio do lado esquerdo do Canal, onde seu Dário Cabral Noronha teve casa de comércio, porto da igarité "Fé em Deus" e umas poucas cabeças de gado. Tempos depois, Francisco Rodrigues, filho de João Rodrigues, que foi morador do Serrame adquiriu a dita canoa dos herdeiros do falecido Dário Noronha, irmão do senhor Teodolino Cabral Noronha, dono do sítio Boa Visa, no rio Curral Panema; e do irmão do prefeito de Ponta de Pedras, senhor João Cabral Noronha (Janja), marido de dona Semíramis de Moraes Noronha, que era filha do fundador da vila de Ponta de Pedras, Antônio Pereira de Moraes. 

Na peculiar sociologia marajoara, morador é categoria de trabalhador sem terra que faz barraca (palafita) em terreno alheio com consentimento do dono legítimo ou tido como tal; mediante pagamento costumeiro de "meia" em espécie. Ou seja, se o terreno for várzea de açaizal, por exemplo, metade da colheita fica com o "dono" e este ainda tem preferência de compra da parte do morador a ser paga de acordo com o "apurado": resultado do preço da feira. Resulta na prática num subsídio imposto pela servidão da gleba ao morador em benefício do patrão que acumula, em geral, papel de fornecedor de mercadorias de primeira necessidade num regime latifundiário de superexploração da terra e da mão-de-obra. Por longos anos, terras da União foram exploradas por supostos donos através de "moradores", recentemente reconhecidos como usuários de terras de marinha isentos de quaisquer pagamentos. A extração de açaí, por exemplo, gera conflito entre supostos donos dos sítios e antigos moradores. Uma situação que está a mudar por uma parte, e por outra trás novas ameaças jurídicas à permanência da "Criaturada grande de Dalcídio" (populações tradicionais ribeirinhas) em seu habitat nativo.

sem nunca parar a cobra grande draga o Rio Canal infinitamente.

No infinito trabalho do Canal, tal qual a cobra grande Boiúna a dragar o rio Arari na galante teoria do índio arariuara a que o sábio de Coimbra, Alexandre Rodrigues Ferreira; se refere na "Notícia Histórica" (1783); as margens novas da ilha da Ponta acrescidas de aluvião avançam continuamente sobre a beira alta de terreno antigo da ilha grande de Joanes ou Marajó, comida pelas bordas, que recua no espaço aberto pela erosão sem fim. É bonito ver e compreender o moto-contínuo de destruição e reconstrução das águas na lição hidrológica de José Ferreira Teixeira: universidade da maré no delta do maior rio do mundo, vida e morte do maior arquipélago fluviomarinho do planeta.