quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

Jornada ao ancestral lago Arari: coração da Cultura Marajoara de mil e tantos anos de idade.

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"Concluirei esta representação, que seria infinita a escrever tudo o que observei, dando a V. Excia. uma sucinta notícia do Arari. É o rio mais complicado, com voltas e rodeios que espero ver, de modo que, para de sua boca subir-se ao lago, é mais o tempo que se gasta em desandar as voltas andadas do que a avançar-se adiante. Pela sua beirada, de uma e outra partes, estão citas muitas roças e engenhocas de açúcar para as águas ardentes que tiram e fazendas de gado vacum e cavalar. É galante a história, digo, a teoria do rio que ouvi a um índio, sendo perguntado pela razão daquelas voltas e, portanto a escrevo:

A ilha, no seu princípio, diz ele, não tinha estes rios. Mas tinha, pela terra dentro, infinitas cobras. Estas, obrigadas das secas, corriam do centro para a costa a buscar a água. No caminho que faziam de rastos pela terra, deixavam, com o peso e grandeza dos corpos, impressas nela as suas figuras, assim mesmo tortuosas e implicadas em torcicolos, como elas são. Caíram as águas das chuvas sobre este rasto que achavam feito e, no seu princípio, abriram regatos. Engrossaram depois os regatos e ficou sendo o total, o grande rio, o que não fora no princípio mais que um regato da grossura de uma grande cobra."

Alexandre Rodrigues Ferreira, "Notícia Histórica da Ilha Grande de Joanes ou Marajó" (1783).






Vejam vocês estou tentando me "alembrar" do caboco novo que, antigamente, eu fui. Já fui feliz proprietário dum casco bem maneirozinho, todo talhado e trabalhado numa peça inteiriça de piquiá, que diz-que foi encontrado, por acaso, de bubuia na maré no meio da baía. O casquinho, paresque, havia fugido na correnteza de algum porto de sítio na beira do rio ou caiu n'água de bordo de alguma canoa geleira durante a travessia, talvez de noite em meio ao banzeiro. Minha mãe o comprou de um afilhado dela por apelido Satuca, que o havia achado e ela me deu o tal casquinho de presente.

Eu no meu casquinho valente, com bom remo de pitaica à mão, "sozinho e Deus", fiz muita navegação por rios e igarapés das redondezas do Curral Panema até Ponta de Pedras. Faço uma pausa aqui a fim de falar desta união inseparável entre o homem ribeirinho, seu remo e canoa: de todas madeiras de remo a pitaica é a de primeira qualidade (veja foto da árvore): 


O gênero desta árvore (Swartzia) têm grande potencial farmacológico (Foto: Arquivo TG)
O gênero desta árvore (Swartzia) têm grande potencial farmacológico (Foto: Arquivo TG). Nome científico Swartzia polyphylla , família Leguminosae , origem norte da América do Sul, Amazônia até as Guianas.

Além deste nome popular de pitaica, a árvore também é conhecida por paracutaca, paracanaúba, arabá e maracutaca. A árvore tem madeira de boa qualidade preferencial para fabricação de remos devido a leveza e durabilidade em contato com a água, dá lenha excelente para fogão da Criaturada ribeirinha que vive longe das cidades. Mas, voltando à vaca fria. Isto é o casquinho... No limite da capacidade de carga, o dito cujo com duas polegadas de altura fora d'água, aguentava além do jacumã (piloto) mais uma pessoa, contanto que essa  fosse magra, e ainda um paneiro de meio alqueire de farinha d'água. E nada mais... 
Todavia, por descuido meu, num certo dia de Finados quando o pessoal dos sítios vem à cidade acender velas no cemitério pelos seus mortos, o casquinho maneiro "fugiu" da ponte da Casa da Beira. Ou o mesmo foi levado do porto por algum caboco mais precisado que eu: na vida ribeirinha é assim, as coisas vão e vem na maré conforme a precisão da gente... E lá se foi embora meu casquinho de piquiá talhado por um bom carapina desconhecido! Masporém, a lembrança dele ficou pra sempre e ainda hoje nós fazemos boas viagens pelo rio das recordações. 
Revejo na paisagem da memória todas aquelas matas das paragens percorridas a remo, os igapós atalhando caminho de maré cheia a varar matas submersas de um rio a outro. Acredito que minha herança tapuia por parte de minha avó Antônia se me aflorava naquelas horas e paragens ermas. Eu ainda hoje sinto aroma de flores silvestres por via da recordação. Ouço, paresque, cantos de pássaros no alto das ramagens e ruídos sutis de peixes que, de repente, boiam à flor d'água. Assim refaço as viagens feitas na mocidade. Ou invento outras, por necessidade e acaso. Como esta aqui e agora antes que eu me vá embora desta para outra melhor no reino encantado. Sei que não hei de morrer, mas apenas me transformar em ave, bicho ou peixe: caruanas... 

Naquele tempo, fui menino ribeirinho num sítio de nome "Serrame", que foi comércio na era da Borracha e ficou de herança de meu avô galego Chico Varela para a família constituída de cinco filhas e um filho homem caçula, sito no rio Curral Panema, município de Ponta de Pedras, na ilha do Marajó. No fim da história, todo mundo foi embora pra cidade, e o "Serrame" ficou, pouco a pouco, devorado pela erosão do rio que lhes come ainda os barrancos pelas beiras.

Dos começos da viagem


Quando eu não tinha nada pra fazer, lá ia eu no meu casquinho maneiro ao sítio do compadre Manduquinha e comadre Didi, lá no igarapé Bacurituda à meia maré de distância: ele cara de índio aruã, ela preta retinta... Era um tal jogar conversa fora e comer camarão frito com pirão de açaí... Deixa estar que se hoje sou quase um "antropólogo" por conta própria e um quase pajé, devo isto muito a meus compadres do Bacurituba. Muita sabença diretamente da mãe natureza, com certeza, sob orientação dos mestres Manduquinha e Didi. Ela uma negra da Guiné da cabeça aos pés e ele um índio com amnésia... Naquela barraca de palhas de inajá e juçara, estava na cara, se misturavam sangue de índio e de preto que nem nos começos da história da colonização. Ali na varja não havia segredo entre o neto do branco galego e seus compadres mestiços. Deixa estar que minha avó postiça já me havia dito que a mãe de meu pai era uma tapuia, nascida lá na beira da baía, na Mangabeira. 

Esta herança facilitava as coisas para o meu lado, lá no igarapé Bacurituba. O melhor café torrado, pilado e passado na hora; açaí tirado do cacho à minha vista, amassado à mão e coada na peneira; camarão frito e assado na brasa acabado de pegar de lanciação ou gapuiação... Mas o melhor de tudo era a conversa boa na barraca do compadre à beira do igarapé cheia de encantaria. Pra encurtar a conversa, antes de falar de boto que vira gente, das misteriosas candeias que luzem que nem iluminação pela beira do campo e não queimam capim; caçada de alguma onça que ainda rondava por ali dando em cima da criação, curupira e cobra grande; digo logo que o compadre havia encomendado, no Itaguari, uma grande montaria de falca. Uma canoa que dava até pra meter nela quatro remadores por banda, mais o piloto de pôpa, que ia no jacumã. 

O banco do meio da montaria tinha buraco de costume pra enfiar mastro de vela de pesca, caso preciso fosse sair lá fora na baía a fim de estender espinhel com anzol de tenda pra pegar piraíba ou botar rede malhadeira. Com isto quero dizer que a montaria do compadre Manduquinha, se não era a maior, pelo menos seria uma das maiores montarias do Curral Panema. Quando a canoa chegou no Bacurituba, o compadre e a comadre estavam orgulhosos de sua posse. Aquilo era fruto de muito trabalho, oras com a colheita de açaí e oras com bacuri que dava nome o igarapé Bacurituba, significando "bacurizal". Acima de tudo, com a proteção do glorioso São Sebastião, a criação de porcos soltos na varja, masporém acostumados dormir no chiqueiro feito de toras de açaizeiro. Tudo entregue a marreteiro para levar à feira do Ver O Peso na igarité de fretes chamada "Fé em Deus", propriedade do senhor Dário Cabral, dono do comércio local, no sítio Ourém, localizado no Rio Canal.

O compadre trouxe tinta do comércio do 'seu' Dário Cabral para dar acabamento à montaria. Pintou-a com capricho nas cores vermelho e azul com traços brancos vistosos. Todavia, aconteceu um problema. Foi na hora de batizar a canoa. Manduquinha queria que ela se chamasse "FAVORITA", em letras graúdas, escritas na proa sobre a falca. Até aí, tudo bem... Masporém, nem o compadre nem a comadre sabiam ler e escrever, tampouco os pirralhos ainda pequenos, o mais velho era macho e o resto quatro meninas, uma ainda jitinha mamando no peito. Foi assim que coube a mim abrir as letras com o nome da montaria.

Ora, a "Favorita" foi a tal montaria desta estória que se conta agora. Levando eu e meu camarada Vadico, pouco mais ou menos, três dias e três noites desde o Bacurituba, igarapé tributário do rio do Canal; até o Jenipapo, na Boca do Lago (arari); com a canoa chapada de mercadoria, casca de muruci e banana; pra fazer escambo com peixe seco. O Vadico no caso é nome postiço. Pois, me aconteceu depois, quando eu já era da cidade grande e virei repórter de polícia de contar o caso como o caso foi e o meu camarada meteu-se numa encrenca dos diabos com mulher alheia terminando em briga feia, na feira, acabando no Pronto Socorro. O besta que sou eu publicou o nome verdadeiro do tal "Vadico". E por castigo perdi o amigo. Em compensação, o camarada se endireitou, melhorou de vida e finalmente virou pastor. Olha lá, quando a gente se mete numa canoa a fazer marretagem pelas ilhas. 

Fomos e voltamos com a "Favorita" até o lago Arari a cabo de remo. Meu camarada Vadico tinha um ou dois anos de idade a mais que eu, era o mais entendido e já conhecia o caminho do rio até Cachoeira. Eu ainda não havia passado da ilha de Sant'Ana nem uma remada rio acima. Meu negócio, na verdade, era conhecer o lago falado por meus velhos. Na volta pela parte que me toca, uma malária a mais no currículo. Como diz o outro, tudo vale a pena se a alma não é panema... 

Agradeço à vida por me haver dado tanto. Na próxima postagem a gente conta como se passou esta viagem de começo ao fim. Aqui vai um abraço grande aos canoístas amigos, com votos de que continuem, cada vez mais, remando e descobrindo a paisagem da Criaturada grande de Dalcídio pelos nossos rios. Até logo. 

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

Psicografando Dalcídio Jurandir na rede da manhã.

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"De hoje não passa... Já tem um tempão que quero pedir para o Dalcídio autografar o único livro que terminei de ler dele, mas com tantos vultos próximos poderiam pensar que estou tietando o Dalcídio. Passei uma vez no meio dos 15 vultos pedindo licença, mas a coragem sumiu... Fui até a cozinha beber uma água e voltei para rede com o livro entre os braços, respirei 10 vezes quando levantei estavam todos olhando, mas desta vez a coragem não me abandonou. Pedi licença ao Lemos, estendi o braço e disse meio acanhado e com voz baixinha: assina esse exemplar para mim! Ele me olhou carinhosamente e sorriu..." -- Faeli Moraes, escultor (copiado do Facebook).


"uma vez tomei coragem e mandei textão de suposto romance a fim de saber o que o mestre dizia a respeito da 'obra'... Ele amavelmente me respondeu: "não critico nem corrijo, escreva com toda sua espontaneidade e dê testemunho ai do homem largado em plena maré"... Desisti de ser romancista e Flaviano já me havia dito "esta família só dá poeta"... Então foi assim que me fiz defensor dativo da Criaturada grande de Dalcídio. Cada um na sua pode fazer um pouco por uma grande causa comum." --  José Marajó Varela, resposta a Faeli Moraes). 




Eu queria tanto escrever romance! Isto me aconteceu ainda moço depois de ler o romance Marajó, de Dalcídio Jurandir, que minha avó mandou. Ah! Eu, completamente analfabeto político, mal sabia interpretar texto: mesmo assim, paresque, caíram-se as escamas dos olhos... Está vendo este calo em meu dedo médio da mão direita? É meu diploma de escrevinhador honorário da Criaturada grande de Dalcídio, foi assinalado como tatuagem de escriba com caneta Bic sobre resmas de papel almaço. 

Foram rios de tinta e montanhas de papel. Não queria eu escrever um romance, simplesmente, porém o romance da minha vida naquele verde mundo de varjas que passou entre chuvas e esquecimento. Nos começos da estória, o Fim do Mundo, bairrozinho singelo do matadouro na Vilarana - a vila que nem vila era -, inventada da vila Itaguari (Ponta de Pedras, na ilha do Marajó). 

Quando me entendi por gente tive logo desavença teológica com minha santa mãe. Ela queria que eu fosse estudar para ser padre católico, eu tinha nem um pingo de vocação. Sobretudo, quando comecei a escutar música na vitrola de uma certa menina que morava pras bandas do campo do Marajoense... Em compensação prometi a minha mãe que eu não iria morrer nunca. Isto quanto quase morri afogado na beira do rio tomando banho... 

Haja a rabiscar papel ensaiando sonetos parnasianos e já as primeiras linhas do "Tijuco", o romance. Trabalho de Sísifo. Nunca fui muito longe da terra natal, mas onde fui o palimpsesto foi comigo como uma sombra. Carma, carma mesmo; agora que sei do que estava velha palavra trata de verdade. Agora sei o por quê do interminável romance... Depois do impacto da leitura expedita de Dalcídio, por acaso, foi a vez de descobrir o grande sertão-mundo de Guimarães Rosa... Aí o velho Tijuco do meu carma se tornou desconforme. Um monstro que nem a cobragrande Boiúna! pesadelo recorrente... Chega! Basta-me o tijuco das varjas que ficou na minha alma desde o barro dos começos do mundo... O tijuco pega na vida do mariscador nos manguezais da vida, sobretudo se o cara por acaso tem uma avó tapuia descendente de cinco mil e tantos anos de gapuiação neste vasto mundo de águas grandes.

Foi então, cansado de remar contra a maré; fiz uma canoinha pequena menos pretensiosa do descobrimento do gigantesco Amazonas. Um extrato do beneditino e volumoso Tijuco, agora condenado a não vir a lume ver a luz do dia. A este modesto rebento do pretensioso livro dos aluviões amazônicos, chamei de Tipacoema. Modo de dizer o amanhecer do rio com mare seca segundo a fase da lua. E geralmente quando o Sol e a Lua se encontram no céu equatorial. O escrevi, então, em concurso nacional mas a amável resposta de agradecimento foi, volte na próxima ocasião... Poxa! Eu ainda não sabia que não é fácil ser escritor na periferia da Periferia... Então, eu quis saber o que Dalcídio acharia disto tudo. Não me queixei de nada, apenas mandei uma cópia do Tipacoema e ele guardou e me respondeu paternalmente. Não me desanimou, muito pelo contrário.

Fiquei unicamente com o original. Quando Dalcídio morreu perguntei aos parentes, acharam a cópia do Tipacoema aí? Procurado o filhote do Tijuco, no Rio de Janeiro, não foi mais encontrado. O original foi comigo na mala para Brasília junto com os livros do meu fado que eu carreguei comigo toda vez que mudei de residência (disseram-me um dia, duas mudanças equivale a um incêndio; é verdade). Lá eu conheci o amigo escritor e jornalista de guerra D'Almeida Victor que amavelmente me ouviu falar daquela aventura literária e, certamente, para incentivar o neófito pediu para ler o Tipacoema. Cassiano Nunes, professor de literatura da UnB achou em poemas meus semelhança com o poeta alagoano Jorge de Lima. Confesso que, estando eu desempregado, tais afagos foram para mim como uma boia de náufrago... Sobrevivi, graças sobretudo ao Tijuco onde a criaturada grande de Dalcídio habita.

Porém, nesse ínterim aconteceram a morte de Dalcídio, D'Almeida Victor sofreu enfarte fulminante, e com eles o Tipacoema foi para o além... Cassiano Nunes também se encantou tal qual como ele havia escrito num poema: felizes são os marinheiros que partem sem dizer adeus... 

Todo este tempo e eu sem coragem de tocar no assunto na rede. Falta dizer que com o computador aposentei caneta Bic e máquina de escrever: agora está tudo na nuvem e amanhã quanto eu me tornar caruana ou estrela no mundo encantado; meus camaradas vão poder encontrar as minhas estórias nesta rede virtual. Não é porque eu não vou morrer, que estarei aqui em carne e osso para sempre a escrever sem parar... Por acaso, o Faeli Moraes sem querer veio me empurrar para fora da linha de silêncio, de fato: de hoje não passa...  Para encerrar, devo dizer que a fada madrinha Soraia Reolan Farias achou a cópia do meu romance ribeirinho no acervo de Dalcídio depositado na Casa de Rui Barbosa, em Botafogo. A carta resposta do tio Dal está comigo pronta para o museu dos filhos e netas... Muito a agradecer a muitas e muitos amigos desta nossa rede.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

A ILHA DO MARAJÓ É UM PORTAL DAS REGIÕES AMAZÔNICAS E O MUSEU DO MARAJÓ PORTAL DA PAISAGEM CULTURAL MARAJOARA.

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Maior que o "reino de Portugal' no dizer do padre Antônio Vieira, Marajó, antiga ilha dos Nheengaíbas - falantes da "língua ruim", grupo linguístico de raiz Aruak, por oposição à boa língua geral Nheengatu forjada pelos jesuítas com base no velho Tupi -, está atravessado na boca do maior rio da Terra entre as "ilhas de dentro" (fluviais) e "ilhas de fora" (marítimas) do maior arquipélago fluviomarinho do mundo. As duas mil e tantas ilhas do Marajó, grandes e pequenas, fazem parte da grande área cultural das Guianas, que vai desde o delta-estuário Pará-Amazonas rumo norte até o delta do Orenoco e ilha de Trinidad confundidas. Desta geografia histórica pouco ensinam nas escolas d'aquém e além Oiapoque. A colonialidade de nossas elites explica...

Na Amazônia tudo é superlativo, inclusive a alienação e pobreza da Criaturada grande de Dalcídio (populações tradicionais). Notável território da memória da amazonidade, o Marajó velho de guerra é um grande livro aberto: compêndio vetusto cujo preâmbulo foi escrito pela própria mão da natureza no barro dos começos do mundo. O primeiro capítulo foi escrito por autor anônimo na cerâmica marajoara, com grande antiguidade de uma escrita ideográfica desconhecida pelos brancos e esquecida pelos descendentes das primeiras nações do continente de Amerik ('país do vento' em língua maya; aparentemente a dizer "terra de Ik", deus do ar, donde veio a palavra América)... A arqueologia americana informa: está tudo escrito na terra. 

Quando eu falo da ilha do Marajó estou me referindo, principalmente, ao homem antigo que a ocupou desde os começos do povoamento há cerca de 5000 anos até o Diretório dos Índios (1757-1798). A catequese católica a partir das pazes de Mapuá (Breves) e fundação das aldeias de Aricará (Melgaço) e Aricaru (Portel), em 1659, converteu o bárbaro Marajó em "índio cristão" compelido a esquecer a "língua ruim" para falar nheengatu. Assim o índio marajoara desterrado em sua terra foi entregue desarmando a rudes Diretores que, palmatória em punho, o obrigaram a falar português para ser súdito do rei de Portugal. Deste jeito, o 'caboclo' foi tirado do mato e convertido a índio  com amnésia. Este mal de Alzheimer colonialmente adquirido.

Mas, apesar de tudo a antiga ilha grande nheengaíba, Analau Yohynkaku dos Aruã, ficou sendo por acaso chão de Dalcídio: desde 1939, em meio aos embates do Fascimos e da II Guera Mundial, quando o índio sutil saído do famigerado Presídio São José, foi se refugiar onde outrora índios bravios, desertores e escravos fugidos resistiram à colonização da ilha pelas patas dos bois e cavalos importados de Cabo Verde. Na antiga aldeia dos sacacas elevada em vila de Salvaterra o território da memória veio à tona e tomou forma de romance Chove nos campos de Cachoeira e Marinatambalo (publicado mais tarde com título de Marajó). 

A chuva nos campos é benfazeja, toda natureza canta quando o inverno está pra chegar... A terra negra das queimadas renasce, até o pequenino caranguejo chamado crairu que jazia desidratado pelo sol inclemente, de repente com a primeira chuva ressuscita... Toda avifauna faz cantoria com o coro dos sapos alegres na reverdecida paisagem acenando aos viajantes com suas mais vistosas folhagens. Marinatambalo / Marajó evoca aquele dia distante entre chuvas e esquecimentos, que o cariuá (branco malvado) pôs os pés na ilha dos aruã...

Só em 1500, mais de mil anos depois do primeiro teso de Cultura Marajoara; passado o dia de São Sebastião houve no rio Santa Maria de la Mar Dulce (Uêne dos aruacos, Paraná-Uaçu dos tupis, Marañon dos hispânicos, rio das Amazonas dos portugueses e rio Babel do padre Antônio Vieira),  o primeiro contato entre nativos amazônicos e europeus. Uma má recordação afinal de contas. O cronista espanhol Oviedo escreveu que a viagem desastrada de Pinzón pela foz do Amazonas teria sido a provável causa dos ataques de índios do estuário amazônico aos dois bergantins de Orellana, 42 anos depois, do assalto de Marinatambalo e sequestro dos 36 tapuias... Mas, esta notícia histórica ficou trancada a sete chaves nos arquivos da Casa de Índias (Sevilha): dizia ela que o navegador espanhol Vicente Yanez Pinzón, sócio de Cristóvão Colombo, assaltou como um pirata a ilha Marinatambalo [Marajó] donde foram escravizados os primeiros 36 "negros da terra" da América do Sul e levados para o cativeiro da ilha Hispaniola (Haity). 

Depois daquele triste e distante dia de fins de janeiro de 1500, a primeira notícia a respeito do "homem do Pacoval" foi datada, por acaso, pelo fundador da freguesia de N.S. da Conceição da Cachoeira do rio Arari, Florentino da Silveira Frade, em 20 de Novembro de 1756. Coincidência admirável com o DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA, que doravante poderia ser considerado também Dia da Cultura Marajoara. Vale lembrar, o forte do Presépio foi levantado por braços da nação Tupinambá e soldados portugueses no ano de 1616, ano da fundação de Belém do Grão-Pará: mas o primeiro curral de gado do Arari teve que esperar até 1680... Depois que mil e tantos arcos e remos do guerreiro Tupinambá juntaram-se a mamelucos façanhudos recrutados no Nordeste sob comando luso para tomar Mariocai (Gurupá) aos holandeses (1623), depois que Pedro Teixeira varou pelos furos de Breves, ida e volta, levado a Quito (Equador) por 1200 tupinambás sob comando do mestre de campo mameluco pernambucano Bento Oliveira (1637/1639): já em 1538 uma enorme migração tupinambá saída de Pernambuco pelos sertões chegou ao Alto Amazonas. Procurando o quê? Acredito eu que a mítica Terra sem Mal onde não há fome, trabalho escravo, doenças, velhice e morte... Coincidência ou não o valente tupinambá depois da bandeira de Pedro Teixeira nunca mais foi o mesmo. Desenganou-se da Terra sem Mal? Todavia, sem o mito selvagem não se falaria hoje em Amazônia brasileira...

Ora escrevendo isto por que? Porque 2019 corrente foi proclamado pela ONU Ano Internacional das Línguas Indígenas face à urgente necessidade de preservar, revitalizar e promover línguas indígenas ao redor do mundo. Existem atualmente de 6 mil a 7 mil línguas no mundo. Cerca de 97% da população mundial fala apenas 4% dessas línguas, enquanto apenas 3% do mundo fala 96% das línguas restantes. Grande parte dessas línguas, faladas por povos indígenas, continuarão a desaparecer em um ritmo alarmante. Sem medidas apropriadas para abordar esse problema, a contínua perda de línguas e de suas histórias, tradições e memórias reduzirão consideravelmente a riqueza da diversidade linguística no mundo.  Segundo estudos especializados, notadamente o linguista Jose Ribamar Bessa Freire na obra já clássica Rio Babel: a história das línguas na Amazônia grande é o número das línguas extintas na região amazônica, 

Tangas




A leitura da paisagem como qualquer outra precisa ser ensinada. Porém quem a ensinará se não houver aprendido? Mestre não é quem ensina, mas quem de repente aprende: escreveu Guimarães Rosa a conversar com burutizeiros pelas veredas do grande sertão de Minas. No romance Passagem dos Inocentes Alfredo segue os passos do avô dele, preto velho Bibiano, pela trilha do igarapé onde o neto observa o avô a se confundir com aqueles troncos de palmeira escuros. Dos miritizeiros o velho tirava o sustento na arte de tecer paneiros de tala de miriti. A natureza, mais uma vez, se transforma pela mão e a consciência humana. Na foto acima a plameira inajá com cacho e croatá a fim de nos lembrar de mil e uma utilidades na vida das populações tradicionais, Criaturada grande de Dalcídio. Lembro a pesca de gapuia onde o croatá servia para esgotar água dos poços na baixa mar, todo grupo reunido em ajuri (aruaque) ou puxirum (tupi)  para arranjar o 'de comer'...
A paisagem registra vários aspectos representativos da sociedade. Nesse sentido, o conceito de paisagem amplia-se, na medida em que não se limita a uma divisão geográfica. Ela revela a memoria do território (história, cultura, geografia) na economia de uma qualquer sociedade. Paisagem significa tudo que os sentidos humanos (tato, audição, olfato, visão) podem captar. Tudo que se consegue enxergar é uma paisagem, tudo aquilo que a audição escuta é uma paisagem. Portanto, tudo que o ser humano consegue sentir é uma paisagem. Fechando os olhos ainda neste momento poderá sentir um computador à sua frente, algumas paredes e, se prestar mais atenção, poderá ouvir carros e música lá fora. Você não vê, mas sente a paisagem. Podemos guardar uma paisagem na memória.  Por ser tudo que está ao alcance de nossa percepção, a paisagem sempre será uma herança, ela vai fazer parte de nossa memória.

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sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

O Negro na Cultura Marajoara






Apesar de uma admirável produção acadêmica a respeito do contributo negro africano na história colonial portuguesa na Amazônia, ainda resta margem para muitas suposições. Nesta canga bruta é que eu costumo lavrar. Para acadêmicos e supostos acadêmicos, suposições são desprezíveis posto que não devem se misturar às altas filosofias e aos salões dourados da nobreza intelectual. Os diletantes, como eu, tem dois caminhos à escolha: enfiar viola no saco e ir cantar na freguesia do folclore, onde quem conta um conto aumenta um ponto... Ou ficar de bico calado aprendendo aquilo que é idolatrado na casa grande como verdade sagrada. 

Mas. há ainda uma terceira chance, no limite entre o garimpo de velhos alfarrábios esquecidos e a intuição. É por esta que eu vou. O risco de dar com os burros n'água é considerável e o prêmio de achar alguma coisa que preste é nada... Tenho eu por mestres no assunto da negritude os poetas Bruno de Menezes, da Academia do Peixe Frito, e o amado Aimé Cesaire, da ilha da Martinica. Fiquei frustrado por ter ido a Fort-de-France com missão comercial do Estado do Pará e não ter oportunidade de falar com Cesaire que, na ocasião, estava em campanha eleitoral no interior... Paciência. 

Não posso negar influência do índio sutil Dalcídio Jurandir na minha formação política e intelectual. Eu era cego e não via o panorama social da ilha grande onde a gente vivia lado a lado entre brancos, pretos e pardos como Deus criou a mandioca utilíssima e a jararaca malvada... Foi através do romance Marajó que "tio Dal", à distância, morando ele no Rio de Janeiro abriu-me os olhos, por acaso em casa de minha avó Sophia, em Ponta de Pedras... O racismo toldava-me os olhos como a noite escura e eu nem desconfiava que existe a claridade do dia... Ah, mas como eu adorava ver um mulata requebrar numa festa de sábado, lá no Carnapijó! Ah, se eu pegasse essa mulata e minha mãe não soubesse da presepada... Pra casar só se fosse "filha de família": interessante que "branco" ou "preto" não exatamente a tês da criatura, mas a "cor" social... Bates -- Henry Walter Bates foi um naturalista e explorador inglês famoso por sua viagem à Amazônia, junto com Alfred Russel Wallace (co-autor da teoria da evolução das espécies, com Charles Darwin), com objetivo de recolher material zoológico e botânico para o Museu de História Natural de Londres --, ele explicou o caso do preto que virou branco por ter se tornado rico... Perguntaram-lhe, então: pode um preto ser rico? Brancos e pretos viviam, sim na maior tranquilidade; os senhores comendo, bebendo, enriquecendo e fazendo filhos bastardos por conta do boto sedutor de cabocas... E os pretos a bom labutar pra trazer à mesa farta dos senhores o de comer de todos os dias, pastorear o gado, matar onças e jacarés que atacavam bezerros e curar bicheira, ferrar a 'malhada' (manada)... 

Esta minha avó Sophia na verdade era minha tia, mãe de criação de meu pai Rodolpho Antônio (nome tirado do padrinho alemão amigo do capitão Alfredo e Antônio para lembrar Antônia, a índia morta no derradeiro parto depois de dar ao professor e marido a prole a começar de Sophia Tautonila, Raimundo, Laudelina Diva, Ambrosina e Otaviano Celso) irmão caçula dela, gêmeo do natimorto batizado Manuel. Minha avó verdadeira foi a índia mangabeuara Antônia Silva, que morreu de parto dos gêmeos do capitão da Guarda Nacional Alfredo Nascimento Pereira, dos quais somente sobreviveu o que veio a ser meu pai. 

Avó Sophia e tia Lodica foram minhas mestras de história da família Pereira, a casa era paresque um museu e o quintal um bosque enorme em plena vila de Ponta de Pedras. Quintal tão vasto que chegou a ter vaca leiteira para criar o irmão zinho órfão e depois o Sidraque Pereira, filho de dona Fuluca; moradora do Paricatuba, sítio Menino Jesus que tio Felipe português e tia Serafina índia da aldeia da Mangabeira, deixaram de herança para tia Laudelina Diva Pereia (Lodica)...

Então, que sou neto de índia marajoara com descendente cristão-novo (judeu convertido ao catolicismo), por parte de pai; e de imigrante camponês da Galiza (Espanha), meu avô Francisco (aliás Celestino) Varela e a branca Maria Joana Peres de Castro, minha avó Maroca; filha de dono de escravos, no sítio Fé em Deus, no Baixo Arari. Reza a lenda na história oral de minha família que esse meu bisavô espanhol foi um "bom senhor de escravos"... Minha santa mãe com suas irmãs e um único irmão gabavam-se da bondade do velho Pedro Peres de Castro, dizendo eles que depois da Lei Áurea (1888) os "pretos" do Fé em Deus continuaram lá, na maior harmonia com os brancos, e até alguns parentes daqueles ex-escravos que pertenceram a senhores maus vieram se chegar como novos moradores... 

Esta passagem sutil entre a antiga senzala e a barraca do futuro cabano muito me interessa. Sobretudo depois que escutei, mais ou menos aos seis ou sete anos de idade, acesa discussão entre meu pai caboco e minha mãe galega ele a dizer: cuidado comigo, eu tenho sangue cabano!... Sangue cabano eu também tenho? Lendo os Motins Políticos, do historiador da Cabanagem, descobri que um certo capitão do quartel de São José (anterior convento e depois presídio) chamado Gomes Varela se passou com tropa e armas para o lado dos revolucionários paraenses na madrugada de 7 de janeiro de 1835... Aí tem coisa! Castros e Varelas hoje há por toda parte, porém na primeira metade do século XIX, era forte a possibilidade de ser imigrante galego misturado a pobres portugueses refugiados da pobreza na Europa. 

Ah, sim!... Estava eu me lembrando do índio sutil (apelido dado por Jorge Amado a Dalcídio durante discurso na Academia Brasileira de Letras, durante entrega do Prêmio Machado de Assis de 1972); que na verdade era um "mulato" filho de dona Margarida Ramos, descendente de escravos em Ponta de Pedras, e do "branco velho" capitão Alfredo, devoto de Santa Rita de Cássia, nascido na vila de Benfica (Benevides), filho do voluntário da Pátria Raimundo Pereira... 

Pois o tal índio sutil, no romance Marajó (aliás, Marinatambalo), me mostrou a negritude marajoara... Missunga, ó Missunga!... No cair da tarde no rio Paricatuba aquele antigo chamado penetrava o chão de Dalcídio, varava o sometume mágico entre o lago encantado do Guajará e boiava lá no Caldeirão, no Paracauari para dali ir ao mar sem fim até o Congo angolano... Quem conta um conto aumenta um ponto. Esta é a liberdade dos diletantes, que não se fecham nas regras vetustas da historiografia oficial. Próximos da poesia e do romance como uma verruma para extrair da vida o espírito da coisa. 

Ah, mas quem vai ensinar padre nosso a vigário, reza forte a pajé e a evocar os vóduns a uma mãe de santo em casa de Mina? Pois Marajó é isto tudo e mais alguma coisa. Séculos de um apartheid latifundiário. A síndrome de Estocolmo já existia nas fazendas ao tempo das candeias e castigos no Viramundo (aparelho de tortura para castigar preto fujão). Vá lá no museu do Padre Gallo, mas não se assuste. Nem tudo lá é bonito de se ver. É só para despertar consciências adormecidas.