no dia de aniversário de minha mana Maria do Socorro,
lembrança dos sobreviventes da geografia da mortalidade
infantil na ilha do Marajó.
Cinco mil anos de nomadismo paleo-índio nas terras baixas da América tropical nos assistem até invenção da primeira cultura complexa da Amazônia, na ilha do Marajó, cerca do ano 400 depois de Cristo. Todavia, a história das regiões amazônicas é feita de fragmentos descosidos como "cacos de índio" à imagem e semelhança do finado ecomuseu que um dia foi chamado O Nosso Museu de Santa Cruz do Arari (1973-1981) filho do feliz casamento entre a necessidade e o acaso: o tal ecomuseu do padre Gallo foi inventado no berço mesmo onde nasceu a Cultura Marajoara (ver Giovanni Gallo, Motivos Ornamentais da Cerâmica Marajoara, edição de 2005 com prefácio de Denise Schaan).
Giovanni Gallo (Turim, 1927 - Belém do Pará, 2003) morreu sem saber que ele havia criado - "sem querer querendo" -. o primeiro ecomuseu da Amazônia. Este inusitado museu no fim do mundo logo se transformou em museu comunitário e o padre teimoso, em meio a conflito com o prefeito municipal e o bispo diocesano, mudou-se de mala e cuia levando o museu rio abaixo dez anos depois de invenção na margem do lago Arari para ir se albergar em Cachoeira situada no médio curso do rio, onde ocupou uma fábrica falida e abandonada dos chamados "incentivos fiscais" do Plano de Desenvolvimento da Amazônia.
Um verdadeiro mutirão foi necessário para transformar as ruínas da fábrica Oleica no atual Museu do Marajó reaberto ao público no ano do Sesquicentenário daquele município, em 1984. Um museu fora de série iniciado onde, há mais de mil e quinhentos anos, a Cultura Marajoara pré-colombiana nasceu. Refeito no chão do "índio sutil" Dalcídio Jurandir (Ponta de Pedras, 1909 - Rio de Janeiro, 1979) onde em 1680 se levantou o primeiro curral de gado na ilha do Marajó, no rio Mauá, tributário da margem esquerda do rio Arari: aí nessa paragem da sesmaria do capitão-mor da capitania da Ilha Grande de Joanes (1665-1757), André Gavinho; surdiu-se a fazenda Ananatuba dando lugar, mais tarde, à freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Cachoeira do rio Arari (1747), origem do município de Cachoeira do Arari.
Vale lembrar que até então, apesar da tomada de Gurupá aos holandeses e consequente expulsão dos mesmos acompanhados de ingleses e irlandeses (entre 1623 a 1647); apesar da suposta da paz entre portugueses e seus "índios cristãos/' (tupinambás) com os rebeldes Nheengaíbas (1659) e, finalmente, apesar da capitania hereditária da Ilha Grande de Joanes (1665); nenhuma sesmaria dada foi ocupada no Marajó antes de 1680. Os 'índios bravios, desertores e escravos refugiados nos centros da ilha' - mocambos! -, não deixaram colonos se apossar da ilha invencível. Belém do Pará havia 64 anos desde a sua fundação por soldados portugueses e guerreiros tupinambás que receberam o capitão-mor Castelo Branco, ajudado pelo francês Charles des Vaux, de braços abertos e prontos para ir a guerra contra os inimigos hereditários Nheengaíbas.
Só o carpinteiro português Francisco Rodrigues Pereira, teve coragem bastante para sair de sua rocinha na periferia de Belém e se meter numa canoa com algumas cabeças de gado e cavalos cabo-verdianos para atravessar a baía do Marajó rumo ao rio Arari a ser lá o que Deus quisesse... O pioneiro da pecuária marajoara contrariou conselhos de amigos dizendo eles do perigo dos índios existentes naquela ilha grande onde o sol se põe... Eram os belicosos Aruã supostos exterminadores da "fase" ceramista Marajoara; a causa do medo dos colonos, índios pintados como canibais selvagens dentre todos os mais "ferozes" falantes da "língua ruim" (línguas aruaques). Embora não se ache claramente escrito com todas as letras, na crônica da época colonial, a fonte de tais notícias depreciativas do inimigo "nheengaíba" só poderia ser do valente tupinambá, conquistador da terras dos Tapuias; sem o qual não se fazia nada no Grão-Pará inteiro. Inclusive, sem índio tupinambá branco não ia sozinho na selva caçar tapuia para "negro da terra" (escravo indígena). A Casa das Canoas foi um cativeiro tremendo que não se poderia fazer sem arqueiros e remadores tupinambás. Português dependia de índios para um tudo...
A dialética da guerra no maior rio da Terra estava posta. O "marayu" (malvado, na tradução do tupi) - provável origem do nome étnico Marajó -, este "nheengaíba" tremendo guerrilheiro de emboscada, matador de guerreiros da nação Tupinambá, armado de zarabatana feita de raiz de paxiúba (Socratea exorrhiza) e dardos de tala de patauá (Oenocarpus bataua) envenenados de curare, estancou a invasão das ilhas pelos tupi e retardou a colonização de Analau Yohynkaku pelos cariwa (ibéricos).
Como se sabe, o governador da ilha Hispaniola ('Ayti" dos Tainos, atual Haiti e República Dominicana) Gonzalo Fernandes Oviedo aventou a provável hipótese dos índios da foz do rio das Amazonas terem se vingado do ataque a Marinatambalo (Marajó) e captura de seus parentes como escravos em Hispaniola cometido por Pinzon, em 1500, atacando a expedição de Orellana (1542), desde que os dois bergantins espanhóis se aproximaram das ilhas do delta-estuário. Os descobridores do rio das Amazonas passaram debaixo de uma nuvem de flechas até varar para o Oceano; uma destes flechas arrancou um olho a frei Gaspar de Carvajal, então escrivão da aventura e futuro bispo de Lima (Peru).
Havia guerra antiga entre índios do Marajó de um lado e da outra margem do Rio Pará há muito tempo antes da passagem do navegador Vicente Pinzón (janeiro de 1500), quando o piloto de Cristóvão Colombo assaltou a ilha Marinatambalo (Marajó) donde foram levados os primeiros 36 "negros da terra" (escravos indígenas) da América do Sul. Com a chegada de mercadores holandeses e franceses a velha guerra entre índios se alastrou misturada ao conflito exportado da Europa por motivo do "testamento de Adão" (tratado de Tordesilhas de 1494). Holandeses protestantes (evangélicos) em fins do século XVI, praticando escambo fizeram-se amigos dos Nheengaíbas, enquanto que na ilha de Upaon-Açu (São Luís do Maranhão) Tupinambás, nos inícios do século XVII, convidaram corsários franceses que os visitavam a vir morar junto às suas aldeias: era. sem dúvida, a guerra contra o invencível Marajó que motivava pajés tupinambás aconselhados pelo espírito Jurupari a se aliar aos Mayr (louros, franceses) na ambição de conquistar a Terra sem males em direção agora do Araquiçaua (lugar onde o sol adormece) ... Prova disto é que, sem perda de tempo, os ditos tupinambás deixaram de lado amigos franceses e passaram para o lado dos odiados Peró (papagaio, portugueses), quando da tomada do Maranhão (1615) ajudando sem pestanejar o capitão-mor do Rio Grande do Norte, Francisco Caldeira de Castelo Branco a levantar o forte Presépio (1616), núcleo fundador de Belém do Pará, de olho já na ilha grande dos Nheengaíbas: pedra no caminho, evidentemente. Sem adivinhação não se vai a lugar nenhum na invenção da Amazônia...
Poucos sabem que o povo de Analau Yohynkaku , dentre outros "nheengaíbas" da Babel de línguas "dificultosas" saídas do bucho da Cobragrande na lenda da primeira noite do mundo; começou a chegar nas ilhas do delta-estuário do Amazonas por voltas 1300, segundo o esquema de fases da arqueologia marajoara. De todos os indígenas do Marajó, os belicosos Aruã foram os piores (aos olhos de tupinambás conquistadores e de colonos portugueses, naturalmente); logo após vinham os Anayá [senhores do rio Anajás, que se devia chamar rio dos Anajás]... A ilha outrora dos Nheengaíbas, logo passou a ser chamada dos Aruans, antes de ser Ilha Grande de Joanes e, finalmente, ilha do Marajó. Ilha-mundo, ilhas e terra-firme... O problema para as gentes das ilhas é que a "boa língua" Nheengatu era fruto do olhar de seus inimigos e hoje das muitas línguas e da diversidade de culturas da "língua ruim" Nheengaíba só restaram "cacos" (fragmentos) da babel perdida...
Quando os famigerados aruans chegaram ao Marajó de minha avó tapuia - na altura de 1300 -, os sítios arqueológicos de cerâmica marajoara já existiam qualquer coisa como há mil anos passados! Desde que eles puseram os pés na tal Analau Yohynkaku chamada pelo velho Anselmo José, os rixentos Aruã quebraram pau contra os habitantes das ilhas. E, pouco a pouco, lhes empurraram desde a costa Norte e da Contracosta para a beira da baía do Marajó, na costa-fronteira do Pará segundo a "linha" de Tordesilhas, onde as mais velhas etnias resistiram e hoje seus descendentes resistem sem mais entender "nheengaíba" ou "nheengatu" e nunca ouvir falar do célebre testamento de Adão entre hispânicos e lusitanos repartindo o mundo entre si...
Nós, os cabocos saídos do mato, aprendemos a falar português ditado pela "Santa Férula" (palmatória). Era o terror civilizador no Diretório dos Índios (1757-1798)... "Você fala Tupi?" - pergunta o padre Gallo pela voz muda do mural no Museu do Marajó. Nós todos falamos Tupi a par de Grego e Latim sem saber, talvez um pouco da língua "morta" dos antigos nheengaíbas infiltrada e misturada ao esperanto amazônico que um dia se chamou a Língua-Geral...
A história da Amazônia Marajoara não se pode escrever igual a outras histórias das regiões amazônicas, pois além da extraordinária complexidade e da grande carência de fontes confiáveis; o viajante não deve temer suposições, lendas e imaginações... Do contrário não sobra nada, ou quase nada. Não se tem lá muita coisa para contar. Imagina o drama do padre Antônio Vieira para mandar dizer ao rei dom Afonso VI o que disse e do jeito barroco como escreveu, el-rei ainda na menoridade, um menino deficiente pelas sequelas da provável meningite; feito rei sem que ele quisesse; por um fado terrível. Pobre menino rico que gostava de brincar na rua com meninos de rua e lhe não deixavam livre. Seguido dia e noite por amos, pajens e serventes... Que amava um íntimo amigo italiano de má fama e não queria deitar com a rainha consorte: mentecapto feito rei contra vontade pela morte do príncipe herdeiro, seu irmão de sangue, dom Teodoro... Então, este infeliz monarca em plena infância roubada pela realeza lá iria querer saber da carta "inverossímil" do padre grande dos índios do Maranhão e Grão-Pará? Tenha dó!
O que se passava de fato nas aldeias da missão do Maranhão e Grão-Pará, na segunda metade do século XVII, na verdade é mistério... No século XVIII não se adiantou lá muita coisa na Ilha Grande de Joanes: tudo eram ainda muitas suposições e o naturalista de Coimbra Alexandre Rodrigues Ferreira deixou a famosa Notícia Histórica da Ilha Grande de Joanes, ou Marajó (separata da famosa Viagem Philosophica, de 1783 a 1702), que não se lê porque antes vivia trancada a sete chaves e agora que está digitalizada e franqueada ao público, a gente marajoara é analfabeta a 50% da população ou não tem acesso à internet... Quem tem não se interessa.
Nós somos agora os nheengaíbas do século XXI... Por isto não sabemos que sabemos falar Tupi-Guarani. Ainda acreditamos nas patranhas de nossos avoengos tupinambás comedores de gente, que jogaram nas costas dos inimigos aruãs o costume de comer carne humana. Estes uns, depois de ser falsamente acusados de devorar o primeiro jesuíta que desembarcou na dita ilha, o padre Luiz Figueira e seus 11 companheiros do naufrágio da Baía do Sol, e o mesmo padre Vieira deu curso à infâmia para enfim se render ao suposto cacique Piyé dos Mapuá (talvez personagem inventado pelo padre grande para dar voz a todos Nheengaíbas perseguidos e escravizados no cativeiro da Babilônia amazônica).
No prefácio escrito à edição póstuma da obra do padre Giovanni Gallo, Motivos Ornamentais, em 2005, a arqueóloga Denise Schaan, demonstrou sobejamente a importância dos "cacos de índio" para ressignificar a antiga Cultura Marajoara. Ou seja, adotar método da neurolinguística a fim de atribuir novo significado a acontecimentos através de mudança de certa visão de mundo. Pois foi isto que o daltônico padre Gallo fez com o seu estúrdio museu...E nós, depois de 360 anos de pazes com os índios do Marajó, ignoramos ainda como os próprios marajoaras chamavam à sua ilha ancestral, exceto um fragmento da extinta língua Aruã coletado por Domingos Soares Ferreira Penna ao ouvir da boca de um velho aruã chamado pelo nome de batismo cristão Anselmo José, em fins do século XIX, na vila de Chaves (outrora aldeia dos Aruans), que teria respondido ao fundador do Museu Paraense Emílio Goeldi que a ilha em tela era chamada por aquele povo como Analau Yohankaku. O que significa este nome não se sabe: poderia ser qualquer coisa em memória dos velhos donos da ilha quando os Aruã a conquistaram, os Yona (Joanes, na corruptela em português) ou Sacacas... Quem sabe?
A mensagem de Piyé Mapuá não chegou a Lisboa.
Poderá a mensagem tardia do cacique dos Mapuá, em nome da confederação nheengaíba, em resposta à carta do Padre Vieira aos Nheengaíbas; chegar no Sínodo da Amazônia no estado do Vaticano? Vamos admitir, a suposta carta-patente enviada aos caciques em mãos de dois "embaixadores" (cativos do seminário de Santo Alexandre) da mesma nação indígena é um completo artifício. Todavia, o que nos importa saber agora é que a cidade de Belém do Pará queria a "guerra justa" (extermínio e cativeiro) contra supostos índios piratas chamados "nheengaíbas" que, supostamente afundavam canoas de "drogas do sertão" (coleta de cacau, castanha do Pará, urucu, pimenta, etc. na floresta) e "tropas de resgate" (eufemismo para caçadores de escravos)... Isto porque, neste momento, a polícia fluvial tem base em Breves para combater novos nheengaíbas, ou seja, piratas de rio...
Um requerimento da Câmara de Belém do Pará chegou ao rei e este despachou favoravelmente, mandando ao governador do estado do Maranhão e Grão-Pará, André Vidal de Negreiros; levar a tal guerra à ilha dos Nheengaíbas... Vidal de Negreiros era mameluco pernambucano como muitos "portugueses" da época, filho de pai português e mãe tupinambá. Tencionava, mudar a capital do Pará para Joanes (isto é, a ilha do Marajó). Porém, os vereadores de Belém não aceitaram... Vieira era amigo de Andre de Negreiros e conseguiu adiar o começo da guerra aos Nheengaíbas: foi dado a Vieira curto prazo para tentar a paz. Esta parte da história é longa e eu já escrevi um ensaio chamado Novíssima Viagem Filosófica (1999) contando o que acho a respeito.
Muitos acham que a suposta Paz de Mapuá (Breves), de 27 de agosto de 1659 não tem interesse acadêmico. Eu, entretanto, acho que esses deveriam estudar a história da missão do padre Antônio Vieira na Amazônia por completo, evitando "cacos" e omissões. Se disserem que realmente não houve pazes, carece compreender que também a "guerra justa" não prosperou, fulminada logo pelo parecer do Padre grande que declarou ser "uma guerra impossível de vencer"... Prova-se que Vieira saiu vencedor do Pará, apesar de expulso violentamente (1661) e entregue a seus inimigos no tribunal da Inquisição (cf. sua defesa inicial, a História do Futuro e a inacabada obra ecumênica A Chave dos Profetas). A este propósito, ler Silvano Peloso em "Antônio Vieira e o Império Universal", "A Clavis Prophetarum e os documentos inquisitoriais". Quando mais não seja, a existência atual de Melgaço (aldeia de Aricará) - o pior IDH dos 5.570 municípios brasileiros -, e de Portel (aldeia de Arucará); duas antigas aldeias missionárias fundadas pelo padre Antônio Vieira com índios nheengaíbas vindos do rio Mapuá, conforme a carta a el-rei; nos mostra que se a história claudica, a geografia repõe acontecimentos embora ela esconda as consequências. E, ainda, Aricará e Arucará podem ser nomes dos respectivos tuxauas fundadores, conforme costume daquela época amanhecente da invenção da Amazônia Marajoara.
Então, o Sínodo Para a Amazônia terá notícia da Amazônia Marajoara desde suas origens até a crise mundial atual? É certo que, entre os dias 6 e 27 de outubro vindouro, os dois bispos marajoaras, dom Teodoro Mendes, da Diocese de Ponta de Pedras e dom Evaristo Splenger, da Prelazia do Marajó, deverão se encontrar no estado do Vaticano, em Roma, em atendimento à convocação feita pelo Papa Francisco para ouvir os bispos católicos do mundo a respeito desta região planetária em crise, que guarda a mais importante floresta tropical da Terra, seguida da bacia do Congo. Os oponentes do Papa e dos defensores das florestas e dos povos da floresta são bem conhecidos nas Américas, África, Ásia e na Europa.
Não era só uma ilha grande atravessada na boca do imenso rio das Amazonas habitada por muitas gentes de línguas 'dificultosas', chamadas geralmente Nheengaíbas (falantes da "língua ruim", no dizer preconceituoso de seus inimigos tupis informantes dos colonizadores)... Esta brava gente nuaruaque havia por inimigos hereditários os Galibis (Caribes) pelo Norte e os guerreiros Tupinambás pelo Sul: ambos, diga-se de passagem, praticantes da Antropofagia da qual Aruaques em geral, como os tais 'nheengaíbas", eram vítimas preferenciais invejados pela bravura de seus guerreiros e o conhecimento das mulheres na fabricação do cassave (beju) de mandioca brava, do curare (veneno para flechas) e a arte cerâmica, notadamente dos camotis (urnas funerárias), base da antiga religião dos ancestrais e origem da Pajelança marajoara.
Na verdade, se trata do maior arquipélago fluviomarinho do planeta Terra, somando mais que duas mil e tantas ilhas, grandes e pequenas, ilhas de Fora (marítimas) e de Dentro (fluviais); o Marajó velho de guerra com 500 comunidades locais e meio milhão de habitantes levanta-se no Golfão Marajoara (cf. Aziz Ab'Saber) e entra pela Terra-Firme (continente) adentro, empurrando-se na Floresta Amazônica através do rio dos Pacajás e do Anapu até as ilhargas dos grandes rios Tocantins e Xingu perfazendo território equatorial maior que o estado do Rio de Janeiro, por exemplo. Ou que o "reino de Portugal", no dizer barroco do padre Antônio Vieira na carta "inverossímil" a El-Rei datada do Pará em 29/11/1659 e publicada em 11/02/1660 em Lisboa.
Em primeiro lugar, o leitor deve estar atento à famosa "lábia" do padre; ter em mente que ele praticamente não havia ninguém com quem trocar ideias no labirinto amazônico, há 360 anos passados... Em segundo lugar, Vieira carecia impressionar a Corte distante, ele endereçou a missiva (de fato, um relatório sobre o estado da Missão jesuíta, provavelmente a preparar seu retorno a Europa) ao rei menino sob regência de sua mãe, viúva de dom João IV, dona Luísa de Gusmão). Em abril daquele ano, Vieira em viagem a Cametá sob impacto da morte do rei amigo e protetor decide correr o formidável risco de se inspirar no poeta profeta da vila de Trancoso, o sapateiro Bandarra; a fim de promover a "ressurreição" de dom João IV, que nem o trovador ressuscitou a dom Sebastião em trovas imortais escritas na memória viva do povo português... Foi assim que, o relutante Conde de Bragança incorporou a profecia do sapateiro e se tornou rei dom João IV de Portugal. Um pajé talvez na mesma canoa a caminho de Camutá (Cametá) diria que um caruana 'assoprou' o payaçu. O dito padre, certamente, lembraria o famoso 'estalo' aos pés da Virgem no seminário dos jesuítas da Bahia de Todos os Santos, sentindo-se ele bafejado pelo divino Espírito Santo.
Vieira, então, escreveu a famosa carta secreta ao bispo do Japão, seu confidente, cinco meses apenas antes das pazes com os rebeldes Nheengaíbas! De modo, que a carta secreta onde ele brada "Bandarra é verdadeiro profeta!" e anuncia o Quinto Império do mundo, pela qual seus inimigos o levaram ao cárcere e condenação pelo tribunal da Inquisição por heresia judaizante; a carta de novembro de 1659 serviu para enfurecer colonos do Pará, desenganados da "guerra justa". Esta exasperação colonial é prova da cegueira que o padre dos índios denunciou em São Luís do Maranhão, no Sermão aos Peixes (1654), a caminho de Lisboa onde foi pedir e trouxe a lei real de 1655 para abolição dos cativeiros indígenas. Nas entrelinhas de ambas cartas ainda se pode observar sutil influência das Esperanças de Israel, do rabino português de Amsterdã, Menassé ben Israel (nascido cristão-novo Manoel Soeiro, na ilha da Madeira), com a tese de que os índios americanos seriam descendentes das tribos perdidas do cativeiro da Babilônia. Motivo pelo qual Vieira que advoga a liberdade dos índios defendeu a escravidão dos pretos, sendo ele neto de uma escrava em Portugal.
Na verdade, a Carta do padre grande dando notícia da ilha dos Nheengaíbas (marajoaras) é fantástica! Apesar de menosprezada pela colonialidade dos nossos historiadores, deve ser considerada no campo da literatura e da antropologia pelo menos. Ela, sem dúvida, está no contexto das consequências históricas da morte do rei dom João IV para a missão da Companhia de Jesus no estado colonial do Maranhão e Grão-Pará (Amazônia portuguesa).
A dita Carta fala principalmente das dificílimas negociações de paz entre a cidade de Belém do Grão-Pará e a tal Ilha dos Nheengaíbas (Marajó), consumadas enfim no rio dos 'Mapuaises' [Mapuá], no dia 27 de agosto de 1659. Lá se foram 360 anos! E pouca gente ainda se interessa por estes fatos, dizendo alguns estudiosos que tiveram a notícia de Mapuá que a mesma não tem interesse acadêmico... Na realidade, os acadêmicos não se interessam pelo protagonismo histórico dos "índios".
gravura sobre a expulsão do padre Antônio Vieira e dos jesuítas do Pará (1661).
E por que não? Porque o "payaçu dos índios" pinta os supostos Nheengaíbas (indígenas marajoaras) na qualidade de senhores de sua própria história e senhores de seu território. Melhor tratar a utopia evangelizadora do padre da heresia judaizante - autor da História do Futuro - a fim da Criaturada grande de Dalcidio ainda ter futuro na terra de seus antepassados.
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