Reserva Extrativista Mapuá, município de Breves, ilha do Marajó: sítio histórico das pazes de 1659, entre portugueses e nheengaíbas após mais de 40 anos de guerra, desde a tomada do Maranhão aos franceses (1615), recrudescendo com a tomada de Gurupá e expulsão dos holandeses, entre 1623 e 1647 (foto: Miguel von Behr / ICMBio). Poderia, inclusive, ser reconhecido como Monumento Natural de relevante interesse histórico.
Pena que a colonialidade imperante dentre nossos mais influentes intelectuais relega o papel político do padre António Vieira - visionário sebastiano do Quinto Império do mundo, ou a utopia evangelizadora do Reino de Jesus Cristo consumado na terra -, a último plano, diante da fama de imperador da língua portuguesa e de orador sacro: assim, o ditado iluminista borra o que ele fez na conquista territorial das "almas" dos índios da Amazônia durante a sua missão no Estado do Maranhão e Grão-Pará (1621-1751), mormente na negociação de pazes entre colonos portugueses e índios das ilhas do Marajó, no século XVII, evitando a "guerra justa" (extermínio e cativeiro, para não dizer genocídio) contra os chamados Nheengaíbas. Ou, quiçá, a derrota militar com a perda definitiva do Pará e, consequentemente, da Amazônia para a Holanda aliada aos índios do Amapá e Marajó.
Esta a reflexão que os brasileiros precisam fazer, todos anos, sobretudo nos cursos de História a respeito da data de 27 de Agosto: haveria hoje uma Amazônia brasileira sem os acontecimentos históricos relativos à paz entre numerosas nações nuaruaques, tupinambás cristianizados cansados de guerra e correrias pelos sertões e o reino de Portugal empobrecido pela União Ibérica (1580-1640)?
Porém, não é o passado que interessa agora às jovens gerações amazônidas descendentes daquelas velhas etnias escravizadas e marginalizadas nos séculos precedentes; sim o melhor futuro possível. Para que nos serve a História? Segundo José Honório Rodrigues, na Teoria da História do Brasil, Deus e a História não são para os mortos... O mestre escreveu que aos olhos de Deus todos estão vivos por toda eternidade e para a História o que importa é sempre o presente das sucessivas gerações em demanda de vir a ser. A respeito da existência de um ser Superior ao humano, a crença ou descrença individual é menos relevante que o consenso da coletividade: inegavelmente, o ateísmo e o agnosticismo são largamente minoritários do ponto de vista histórico global. Respeitáveis minorias que abrem caminhos do amanhã, mas mais respeitáveis as maiorias que tecem a realidade do aqui e agora, lutando por conservar seu modo vida nos lugares onde vivem.
O historiador José Ribamar Bessa Freire, autor do clássico Rio Babel: a história das línguas na Amazônia. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, Atlântica Editora, 2004. (Coleção Brasilis), percorre três séculos de história da língua geral amazônica, o célebre Nheengatu, sua implantação e declínio, enfatizando suas funções sociais e seu papel na constituição da identidade amazônica. Pela leitura da obra, fica-se sabendo que o "imperador da língua portuguesa", como o poeta Fernando Pessoa considerou o padre Antônio Vieira, foi responsável pelo nome de "rio Babel" para o "rio das amazonas", que ele grafava também Almasonas, enfatizando a missão de salvar almas dos bárbaros habitantes da região. Ou seja, "civilizar" a multidão de falantes das línguas "dificultosas".
O payaçu dos índios escreveu ao rei de Portugal, que ainda não havia assumido o trono; e, provavelmente, por incapacidade mental jamais leu a carta do missionário da Amazônia lusitana; dando notícia da inverossímil carta-patente em nome de Sua Majestade a todos caciques Nheengaíba, que o superior das Missões diz ter mandado por intermédio de dois "embaixadores" indígenas de mesma etnia dos Nheengaíbas. Ou seja, lhes mandou recado oral talvez por dois nheengaíbas cativos que falavam a língua geral, os quais realmente fizeram a melhor embaixada possível nas penosas tratativas das pazes de Mapuá. O príncipe mentecapto não leu Vieira, porém sua mãe dona Luísa de Gusmão, leu e autorizou depressa a impressão da carta vinda das missões do "Seará, Maranham, Pará, e do rio das Amazonas".
Por suposto, o secretário de estado dom António de Sousa de Macedo (1606, Porto - Lisboa, 1682) tomou nota da mesma carta, sobretudo no que se refere à ilha dos Nheengaíbas. Com a desgraça de Vieira expulso violentamente com seus confrades pelos colonos do Pará, em 1661, e o processo e condenação do mesmo perante o tribunal da Inquisição, acusado de promover heresia judaizante (Quinto Império do mundo), dom António de Sousa de Macedo considerou a posição estratégica da Ilha em meio à desembocadura do grande rio Amazonas e o acesso a águas interiores do continente até às encostas dos Andes, vista no contexto internacional como região contestada entre Portugal e outras nações colonizadoras, apesar do Tratado de Tordesilhas (1494) ainda vigente, revogado somente pelo Tratado de Madri (175), que, portanto, deixava a ilha do Marajó legalmente em possessão da Espanha.
Esta notável observação, nos lembra então que, de direito e de fato, o acordo dos "sete caciques nheengaíba" rompeu a "linha" de Tordesilhas deixando, finalmente, os portugueses com seus "índios cristãos" (Tupinambás) passar rio acima em busca da utopia selvagem que lhes trouxera de longe para a bacia amazônica. Na verdade, Nheengaíba e Tupinambás antropófagos pelejavam antes mesmo da vinda de Pinzón (1500) e outros europeus. O mameluco Diogo Nunes, em 1538, (cf. Nelson Papavero, O Novo Éden: MPEG, Belém-PA, 2000) relatou uma importante migração tupinambá saída de Pernambuco pelo sertão até a Amazônia peruana através do rio Solimões: como aqueles tupinambás chegaram ao alto Amazonas sem passar antes pelo rio dos Tocantins, Pará e Baixo-Amazonas? A resposta está na hidrografia amazônica e a antropologia explica o ódio hereditário entre os índios da terra-firme (continente meridional) e ilhas do Pará. Fato que realça mais ainda a história das pazes de Mapuá e que a historiografia do século XVII dá apenas uma pálida ideia.
As palavras de Vieira se tornaram clássicas na descrição da imagem do Marajó do século XVII e levaram à representação cartográfica dos séculos seguintes, quando se assinala a presença da grande ilha, outrora dos Nheengaíbas ou dos Aruans (ver António de Sousa de Macedo capitão geral e governador da ilha de Joanes, de Pedro da Costa de Sousa de Macedo (Villa Franca) e Edilson Nazaré Dias Motta, http://cvc.instituto-camoes.pt/eaar/coloquio/comunicacoes/pedro_costa_sousa_macedo.pdf )
"Em requerimento dirigido ao rei D. Afonso VI, provavelmente do final de 1663, o Secretário de Estado pedia a doação da Ilha Grande do Joanes, com suas capitanias, de juro e herdade, fora da lei Mental e com as cláusulas e condições semelhantes às anteriormente concedidas naquele Estado. Foram estas informações facultadas a Sousa de Macedo pelo próprio governador da Capitania do Grão Pará, Luís Vasconcelos de Sequeira e por Aires de Sousa Chichorro, capitão-mor na mesma capitania. Estas cartas contém informações credíveis que certamente permitiram ao donatário apoiar as suas pretensões e preparar o exercício do poder senhorial." (Ibdem).
Pouco após a doação da capitania da Ilha Grande de Joanes (1665), Dom Afonso VI foi destronado (1667) por seu irmão, o Infante Pedro, que lhe tomou o reino e a rainha alegadamente por incapacidade mental e sexual para gerar herdeiro do trono. Ainda sobre a carta do padre António Vieira, que serviu de base para concessão da capitania hereditária (1665-1757). Em livro de memória, em que descreve as propriedades da sua capitania, Dom António de Sousa de Macedo trata do “Senhorio da Ilha Grande” (1676), dizendo: “No Gram Pará Estado do Maranhão, sou Senhor, e Capitão geral da Ilha grande de Joannes (donde meu filho tem o titulo de Barão) e em outras duas vidas… he Ilha de grandíssimas esperanças por sua fertilidade, e bom sitio; determino com o favor de Deos tratar della, e sua povoação fundando huma villa com o nome de Santo Antonio, e procurar em primeiro lugar o bem das almas dos gentios de q. he povoada; e do mais que nella convier ao culto da Religião, e serviço de nosso Senhor".
A dar crédito ao padre Vieira, Dom António de Sousa de Macedo deveria agradecer ao cacique Piyé, "o mais ladino de todos" caciques nheengaíba, o único que se sabe o nome. Do ser que o padre inventou-lhe nome e história. Todavia, isto não importa pois o verdadeiro nome de um índio é segredo entre ele seus país e o pajé que assistiu sua nominação étnica. É possível que a fala do índio, na verdade é o pensamento do missionário... O fato principal desta história é que não aconteceu a famigerada "guerra justa" para castigo aos rebeldes Nheengaíbas. Acusados pela Câmara de Belém de praticar pirataria contra canoas da tropa de resgate (captura de escravos) e de "drogas do sertão" (colheita de cacau, castanha, urucu, pimenta, etc.) e, após as ditas pazes, foram fundadas pelo padre António Vieira com nheengaíbas transferidos da ilha grande para a terra-firme - sem oposição dos guerreiros tupinambás inimigos dos insulanos -, as aldeias de Aricará (Melgaço, desde 1758) e Arucará (Portel, idem), no mesmo ano de 1659. Pelo costume da época, aldeias missionadas adotavam nome de seus "principais" (tuxauas ou caciques), deste modo Aricará e Arucará seriam, respectivamente, nomes de nheengaíbas que participaram do encontro, entre 21 de agosto e 4 de setembro de 1659, na igreja do Santo Cristo do rio dos Mapuá. Por outras palavras: se a história de Mapuá deixa dúvidas, a geografia de Melgaço e Portel, a par de Gurupá (1623), testemunha efetiva tomada de posse luso-brasileira do território castelhano além fonteira tordesilhana. Pedro Teixeira levado por 1.200 tupinambás já havia retornado de Quito (Equador) e seus remadores voltaram frustrados, aparentemente, a busca da mítica Yby maraey (terra sem mal).
A grande ilha atravessada na boca do Amazonas, disse o padre grande dos índios; havia, aproximadamente, 40 mil índios numa estimativa expedita. Os Nheengaíbas (nuaruaques) somados aos seus parentes Tucujus, habitantes do Cabo do Norte (Amapá), podiam chegar até 100 mil índios inimigos hereditários dos Tupinambás aliados aos portugueses. Na verdade, a ilha a que Vieira se referiu em carta ao rei não era apenas uma, mas cerca de duas mil ilhas grandes e pequenas, "de fora" (marítimas) e "de dentro" (fluviais), que formam o maior arquipélago fluviomarinho do planeta. Junto com a sua parte de terra-firme (continente), a antiga "ilha" dos Nheengaíbas [ou dos Aruans, Ilha Grande de Joanes, do Marajó, Analau Yohynkaku em língua aruã] soma 104. 410 quilômetros quadrados, o que demostra a grandeza e diversidade da Amazônia marajoara, situada no golfão de mesma denominação geográfica. Em tudo oposto ao Nheengatu (a "boa língua" com base no tupi do Norte), a "língua ruim" (nheengaíba) confederava diversos povos de língua e cultura Aruak da área cultural guianense, que se estendiam do delta-estuário do rio Amazonas até a ilha de Trinidad, no mar do Caribe.
Os Nheengaíbas, isto é, Marajoaras; formaram-se num complexo indígena saído do paleolítico da "grande ilha das Guianas" (cf. Elisee Reclus) ou "grande oval das Guianas" (cf. Raja Gabaglia) de cerca de cinco mil anos de idade! Donde nasceu, há 1.600 anos, a primeira cultura complexa da Amazônia, Cultura Marajoara (ver Cultura Marajoara, de Denise Shaan: Senac, São Paulo, 2009).
Para Bessa Freire, o ponto de partida na atualidade é a desconstrução de dois mitos fundadores da memória coletiva brasileira: o mito da unidade territorial e política, que apagou as fronteiras entre as duas colônias portuguesas na América (Maranhão e Grão Pará, por um lado; e Brasil, por outro); e o mito da hegemonia da língua portuguesa no período colonial, que omitiu o papel preponderante das línguas gerais. Ademais, o autor enfatiza a atualidade da questão ao recuperar dados pouco mencionados da situação das línguas indígenas na Amazônia atualmente — por exemplo, a oficialização, em 2002, das línguas Nheengatu, Baniwa e Tukano em São Gabriel da Cachoeira, município amazonense "maior que Portugal" (Bessa Freire, 2004, p.18) faz questão de enfatizar.
Yves Lacoste ensinou que a Geografia serve, sobretudo para fazer a guerra. Então, a História poderia promover a verdade, a justiça e a paz? O problema é que os donos do Poder e dos meios de comunicação fazem opção preferencial pela manutenção da ordem econômica mundial contra quaisquer tentativas de mudança econômica, tecnológica e militar em disputa geopolitica entre as potências, mediante agressiva concorrência em busca de matérias-primas, força de trabalho menos qualificado e celeiros de commodities (mercadorias) de menor valor agregado, no resto do mundo. A Amazônia resta sendo periferia da Periferia sul-americana.
O pensamento predominante no século XXI reclama uma ordem planetária preocupada com os Direitos Humanos e a conservação da Biosfera: assim, a atual geração em diferentes partes do mundo procura compreender as causas e consequências históricas dos problemas globais - como observa o Papa Francisco em sua encíclica Laudato Si sobre o cuidado da casa comum - o consumismo e desenvolvimento irresponsável levou a humanidade à beira do abismo atômico agravado pela mudança climática. Agora, rememorar e ressignicar o esquecido 27 de Agosto pode despertar descendentes dos extintos Nheengaíbas a respeito da história de Mapuá, por exemplo, para que tenham orgulho da criação da Reserva Extrativista Mapuá, em 2005, a par da mais unidades de conservação na mesorregião Marajó, ativando a luta pela criação de mosaico de áreas protegidas no delta-estuário do Amazonas e a criação da Reserva da Biosfera Marajó-Amazônia.
Japiim (Cacicus chrysopterus), ave símbolo da Resex Mapuá
comunidade Bom Jesus (foto de Flávio Contente, 16/08/2011, publicada no Panoramio, via Google), comuninidade mãe da Resex Mapuá.